
Oito bebés nasceram saudáveis no Reino Unido com recurso a uma técnica inovadora que usa ADN de três pessoas - da mãe, do pai e de uma dadora - para evitar a transmissão de doenças raras causadas por mutações no ADN mitocondrial.
Os resultados, agora publicados no New England Journal of Medicine, mostram que as crianças, quatro raparigas e quatro rapazes (incluindo um par de gémeos idênticos), nasceram sem sinais destas mutações. Uma das crianças já tem dois anos, duas têm entre um e dois anos e cinco são ainda bebés. Todas apresentam um desenvolvimento normal.
O que são doenças mitocondriais?
As mitocôndrias são estruturas que existem no interior das células e funcionam como centrais de energia. Têm o seu próprio ADN, que é herdado exclusivamente da mãe. Quando esse ADN sofre mutações, pode causar doenças graves, como fraqueza muscular, convulsões, atraso no desenvolvimento, falência de órgãos e, em casos extremos, morte precoce.
Estima-se que cerca de uma em cada 5.000 crianças nasça com uma doença mitocondrial. Embora os testes de fertilização in vitro consigam, em muitos casos, identificar estas mutações, nem sempre é possível saber ao certo se um embrião está livre de risco.
A técnica: substituir mitocôndrias doentes por saudáveis
Para evitar esta transmissão, os cientistas da Universidade de Newcastle desenvolveram uma técnica chamada transferência pronuclear.
O processo começa com a fertilização do óvulo da mãe com o espermatozoide do pai. O núcleo desse óvulo fertilizado - que contém a informação genética essencial dos dois progenitores - é então transferido para um óvulo de uma dadora, cujo próprio núcleo foi removido.
O óvulo doado começará a dividir-se e a desenvolver-se com as suas mitocôndrias saudáveis e o ADN nuclear do óvulo da mãe e do espermatozoide do pai.
Na prática, o embrião resultante mantém o ADN nuclear do pai e da mãe, mas passa a ter mitocôndrias saudáveis da dadora, impedindo a transmissão da doença. O ADN da dadora representa apenas uma ínfima parte (cerca de 0,02%) do total genético do bebé.
Este processo, explicado num segundo artigo na mesma publicação, "substitui essencialmente o ADN mitocondrial defeituoso (ADNmt) pelo ADNmt saudável da dadora", disse a investigadora Mary Herbert, professora de biologia reprodutiva em Newcastle, numa conferência de imprensa, citada pela agência Reuters.
Os níveis de mutações do ADNmt foram 95% a 100% mais baixos em seis recém-nascidos e 77% a 88% mais baixos em outros dois, em comparação com os níveis das mesmas variantes nas suas mães, relataram os investigadores no segundo artigo.
"Estes dados indicam que a transferência nuclear foi eficaz na redução da transmissão da doença do ADNmt".
Resultados promissores
Os investigadores analisaram o ADN mitocondrial das oito crianças e descobriram que os níveis de mutações herdadas das mães eram indetetáveis ou estavam presentes em quantidades tão reduzidas que não representam risco de doença.
“A doença mitocondrial pode ter um impacto devastador nas famílias. As notícias de hoje oferecem nova esperança a muitas mulheres em risco de transmitir esta condição e que agora têm a hipótese de ter filhos saudáveis", afirmou o professor Doug Turnbull, da Universidade de Newcastle .
O estudo envolveu 22 mulheres no total. Para além das oito que já deram à luz, uma está atualmente grávida. Sete das oito gravidezes decorreram sem complicações. Numa delas, registaram-se níveis elevados de lípidos no sangue e não houve abortos espontâneos.
Técnica ainda não elimina o risco a 100%
Os investigadores alertam que, embora promissora, esta abordagem não elimina totalmente o risco. Em alguns casos, pequenas quantidades de ADN mitocondrial da mãe podem ser inadvertidamente transferidas com os núcleos, mas em níveis muito abaixo do limiar considerado perigoso.
As crianças estão a ser acompanhadas até aos cinco anos para monitorizar a sua saúde a longo prazo. Os especialistas sublinham que este é um tratamento de redução de risco e não uma garantia absoluta de prevenção.
O Reino Unido foi o primeiro país do mundo a legalizar a doação mitocondrial, em 2015. Desde então, a técnica tem sido autorizada em contextos clínicos muito restritos e sob regulação apertada. Em países como os Estados Unidos, este tipo de procedimentos continua proibido em humanos.
Esperança... não isenta de críticas
Os críticos já levantaram preocupações, éticas e biológicas, alertando que é impossível saber o impacto que este tipo de técnicas inovadoras podem ter nas gerações futuras.