Remar contra a corrente é sempre mais difícil do que quando alguém se deixa levar por ela. Estão reservados para ocasiões especiais os dias em que não importa o sentido do rio que tome, porque o atrito é inócuo perante a força brutal que se lhe aplica. A Alemanha, nos quartos de final do Euro, parecia estar numa maré de azar da qual a sua última barreira teve que a resgatar.

Ann-Katrin Berger posicionou-se em cima da linha de golo. Enquanto as francesas que iam marcar as grandes penalidades estavam no processo de se dirigirem para a marca, deixava as mãos atrás das costas. Só quando as adversárias começavam a correr é que os abria, reduzindo a área que as gaulesas imaginavam disponível quando iniciavam o movimento.

Na derradeira fórmula para desempatar o França-Alemanha (1-1, 5-6 nos penáltis), com aquela ilusão de quem parece disposta a defender sem braços, a internacional alemã com coração de gelo parou dois remates. Numa entrevista ao The Women's Game, explicou o método. “Sempre me senti muito confortável nas grandes penalidades. Enquanto guarda-redes, não tenho qualquer pressão para defender. A 11 metros, as jogadoras de campo devem marcar, é uma baliza grande. É por isso que sou muito calma. Sinto-me num treino.”

picture alliance

Não foi apenas decisiva com as mãos, mas também com os pés. Geralmente, o quinto penálti está reservado para as jogadoras mais habilitadas. Neste caso, a especialista usa luvas e veste um equipamento de cor diferente. Quando chegou à sua vez, Ann-Katrin Berger marcou com uma colocação meticulosa.

A situação não foi inédita. Nos Jogos Olímpicos 2024, fez o mesmo e, pelos vistos, nem é algo que esteja habituada a treinar. “A treinadora nunca me tinha visto bater um penálti. Ela só sabia que eu me sentia confortável”, disse na mesma entrevista referindo-se aos quartos de final, em Paris, contra o Canadá, quando a Alemanha ainda era orientada por Martina Voss-Tecklenburg.

Desta vez, nos quartos de final do Euro 2025, a seleção germânica jogou 107 minutos com menos uma jogadora. A racionalidade deixou de ser um atributo a que Kathrin Hendrich tivesse acesso e a defesa puxou o cabelo de Griedge Mbock. Se há lance em que se aceita que o olho nú dos árbitros não esteja pronto para detetar é este. Com a capitã francesa desgrenhada, o VAR interveio e, sem contemplações, sugeriu um cartão vermelho e a marcação de uma grande penalidade.

Ann-Katrin Berger esteve quase a travar Grace Geyoro. A bola bateu na mão da guarda-redes e resvalou para dentro da baliza. A partir daí, pareceu um daqueles gigantes que crescem quando se irritam. A heroicidade foi semeada em cima de um momento menos bom.

À Alemanha, desfalcada mesmo quando ainda estava a jogar com onze, faltavam possibilidades óbvias de poder discutir a passagem às meias-finais. No entanto, do nada, Sjoeke Nüsken desviou um canto bem antes do primeiro poste, numa zona desenquadrada com a baliza. Talvez porque a geometria não era favorável, o ângulo do cabeceamento surpreendeu.

Alex Caparros - UEFA

A França dominava, mas o empate permitia às germânicas agruparem-se e confiarem no seguro contra todos os riscos. A potência que permite a Jule Brand carregar o peso do mundo de uma ponta à outra do campo encontrou maneira de pressionar Selma Bacha ao ponto da lateral gaulesa cometer grande penalidade. Ainda assim, a Alemanha em inferioridade numérica deu-se ao luxo de desperdiçar a hipótese de se colocar na liderança do marcador. Pauline Peyraud-Magnin parou Sjoeke Nüsken.

É preciso todo este contexto para se perceber o quão adversas eram as probabilidades de que a Espanha tivesse a companhia da seleção de Christian Wück nas meias-finais.

No prolongamento, a Alemanha sofreu com a entrada de jogadoras francesas frescas e, em sentido contrário, a falta de recursos no próprio banco. Faltava tanto discernimento que Janina Minge desviou a bola para a própria baliza. Ann-Katrin Berger estava desenquadrada e o corte da colega sobrevoou-a. É caricato que a melhor defesa do torneio tenha sido feita para evitar um autogolo. A guardiã do Gotham FC tentou compensar com a estirada o que a surpresa lhe retirou em posicionamento. Felina, lançou-se parecendo habitar um corpo desossado e, em cima da linha, resolveu a questão. Para os fotógrafos, foi a oportunidade da noite. Olhando atentamente para as imagens, nota-se que as jogadoras francesas festejaram antes da hora.

Não foi o momento de uma vida, porque a de Ann-Katrin Berger já teve desafios maiores.

Em 2017, quando jogava no Birmingham, foi diagnosticada com cancro na tiroide. 76 dias depois livrou-se do problema, mas não em definitivo. Durante o Euro 2022, e quando já representava o Chelsea, teve uma recaída à qual também deu a volta. “O que aconteceu em 2022 é passado. Olho para o futuro e agora estou a viver a minha melhor vida e estou numa meia-final”, afirmou após a qualificação.