Não havia falta de aviso ou precaução da parte do adversário. Antes do jogo, o “L'Équipe” elogiava a “eterna juventude” de Di María, enquanto Adi Hütter, técnico do Mónaco, disse que o argentino é, “há muitos anos”, “um dos melhores jogadores da Champions”.
Mas o aviso ou a precaução podem não ser suficientes para contrariar fenómenos. Como será ter aquele pé esquerdo mágico? Como será saber que se tem, na ponta da bota, a arma que, se utilizada, pode dinamitar um desafio? Como será sentir-se o escolhido pelas forças sobrenaturais que mandam na bola?
Será sentir-se Ángel Di María. Será ter o poder de olhar para um jogo de derrota e transformá-lo em vitória. Aos 84', o Benfica perdia, preso na maldição de jogar pior contra um adversário em inferioridade numérica. Vários foram os lances em que o Mónaco parecia ter mais jogadores, os ressaltos iam para os pés dos de vermelho e branco, as melhores oportunidades eram para os da casa, o único golo desde a expulsão foi para o Mónaco.
Mas veio Di María. Apareceu como tantas vezes nos últimos 15 anos na história do futebol mundial. Não foram cruzamentos, não foram assistências. Foram pinturas vindas da tela da eterna juventude que vive naquele pé esquerdo.
Não foram passes para golo, o prólogo dos cabeceamentos de Arthur Cabral e Amdouni que transformaram a derrota por 2-1 num triunfo por 3-2. Foram benções para os atacantes, que se transformaram em privilegiados recetores de tal perfume. Uma assistência, duas assistências, puff: adeus à terceira derrota seguida na Liga dos Campeões, olá a ter nove pontos à falta de três rondas, situação pontual que, olhando à presença no play-off, dá bastante conforto.
A época europeia do Benfica viajou até aos 2,08 quilómetros quadrados do Principado do Mónaco, espaço cuja reduzida dimensão contrasta com o tamanho do glamour. Mónaco é terra de príncipes e celebridades, de iates e Fórmula 1. Foi Ángel a mais luminosa das vedetas.
Mónaco é terra de uma das melhores equipas francesas — segunda nesta edição da Ligue 1, no pódio da competição em três das últimas quatro épocas —, ainda que o ambiente algo frio do Stade Louis II, cujos 18.523 assentos não encheram, mostre que, no Principado, se vai à bola quase como quem vai a mais um evento de convívio social. Não há grandes loucuras nem manifestações neste estádio cuja pista é paragem da Diamong League, circuito de elite do atletismo. O apoio mais ruidoso veio dos adeptos benfiquistas, eufóricos após o apito final.
O agressivo e atacante coletivo de Adi Hütter atua de olhos colocados na baliza adversária, assente no trio composto por Golovin, Akliouche e Ben Seghir, criativos cheios de técnica e compreensão do jogo. Procuram-se, associam, criam perigo — têm tanta vontade de o criar que, aos 36’, Ben Seghir, num erro crasso, até isolou Di María. Na melhor oportunidade dos visitantes no primeiro tempo, o argentino permitiu a defesa de Radosław Majecki, um polaco vindo da eterna escola de guardiões daquele país.
Antes disso, dominaram os locais. Logo aos 9’, Ben Seghir, na cara de Trubin, disparou sem direção, com o arranque pressionante do Mónaco a ser consumado com o 1-0 aos 13’.
Golovin, que devido à exclusão da Rússia das provas internacionais tem aqui o seu grande palco, fez uso do seu futebol de meias em baixo, de toques curtos, de saída de pressão cheia de classe. O médio desfez-se de uma multidão de adversários, Embolo continuou a jogada abrindo em Vanderson na direita, com o brasileiro a atirar para defesa de Trubin. Golovin seguiu a ação e assistiu Ben Seghir, autor do golo.
O Benfica tentou reagir à desvantagem, tendo chances para empatar através de Aktürkoğlu ou Otamendi. No entanto, outro dos grandes protagonistas da primeira parte foi o árbitro Rade Obrenovič, o esloveno que parecia um funcionário dos recursos humanos a quem ninguém prestava atenção, desesperadamente a pedir que os trabalhadores preenchessem papelada que estes teimam em ignorar.
Houve protestos de lado a lado, houve Carreras e Florentino a correrem riscos de expulsão, houve Pavlidis a pedir penálti. Houve seis cartões amarelos nos primeiros 42 minutos, vertigem que continuou no segundo tempo. Aos 58’, Singo viu mesmo o segundo cartão e respetivo vermelho. Mas aí já as redes haviam abanado três vezes, ainda que só uma contasse.
Breel Embolo apareceu, ainda adolescente, como candidato a next big thing do futebol europeu. Entre lesões e falta de continuidade, o tempo provou que não era caso para tanto. É um ponta de lança de qualidade, cujo grande defeito é mesmo marcar poucos golos. Nos últimos 28 encontros pelo Mónaco, só marcou três vezes. Logo no recomeço, provou essa falta de eficácia ao atirar ao poste em excelente posição.
Num estádio pouco quente, a segunda parte apresentou-se cheia de incidências, viva, digna de Liga dos Campeões. Aos 48’, Pavlidis aproveitou uma oferta de Caio Henrique para empatar, num lance em que foram concedidas tantas facilidades ao grego que este até festejou antes de rematar.
Nos minutos do caos, na altura da partida em que tudo sucedia freneticamente, futebol como uma sucessão de acontecimentos relevantes, Akliouche e Bah tiveram golos anulados por fora de jogo. Passados 10 minutos do 1-1, deu-se a expulsão de Singo. Bola ao poste, golo, golos anulados, expulsão: tudo sucedeu no recomeço.
No entanto, o vermelho empequeneceu o Benfica. Passiva, a equipa de Bruno Lage assistiu ao jogo do adversário, pecado que teve maior reflexo aos 67', quando todos apreciaram como Magassa finalizava um cruzamento da esquerda.
Os alarmes pontuais soaram. Sair do Mónaco com seis pontos colocava muita pressão no que aí vem, com duelos frente a Bologna, Juventus e Barcelona. Mas era Maghnes Akliouche, artista que poderia engrossar a virtual seleção de Paris que seria candidata a campeã mundial, quem mais se parecia divertir.
O Benfica parecia sem reação, acumulando atacantes mas sem criatividade. Não houve reação coletiva, houve magia individual. Duas delícias saíram das botas por cujos anos não passam, da canhota eterna de um dos melhores futebolistas argentinos de sempre. Não é por acaso que Arthur e Amdouni tiveram de saltar para chegar às bolas vindas de Di María, pois tiveram de se elevar ao estatuto celestial de Ángel.
À nona tentativa, o Benfica venceu pela primeira vez em França na Taça/Liga dos Campeões Europeus. Num jogo de montanhas-russas e mistério, o fato de gala de Di María brilhou na terra do glamour.