A pandemia tornou mais difícil a vida de quem já estava numa situação vulnerável, mas adensou a fragilidade de muitas outras crianças: só no ano passado, 168 milhões de menores ficaram sem acesso à educação.
Depois do pedido do governo grego à União Europeia para que outros países da comunidade pudessem receber alguns menores não acompanhados que estavam nos campos de refugiados, o governo português prontificou-se a acolher 500 menores. Algumas dezenas já chegaram a Portugal, “o país das praias e dos Ronaldos” e ainda são esperados mais jovens que aqui vão construindo o seu projeto de vida.
Entretanto, este mês termina o semestre da presidência portuguesa do Conselho Europeu da UE, e Vasco Malta, responsável pela agência das Nações Unidas para as migrações (a OIM) em Portugal, fala-nos sobre estas vidas em trânsito, o que está a ser e o que precisa de ser feito, as recomendações, ideias e soluções para gerir os fluxos migratórios, num contexto pandémico, de uma Europa envelhecida e sempre com os direitos humanos tanto no plano de fundo como na linha da frente desta conversa.
Seja por motivos de guerra e conflitos, ou mesmo por catástrofes naturais e outras situações de emergência, há muitos menores em situação vulnerável. Qual tem sido o impacto da pandemia nestas crianças?
O impacto da pandemia sobre as crianças foi absolutamente brutal. De acordo com os dados das Nações Unidas, no último ano, 168 milhões de crianças não foram à escola. É um número muito forte. 241 milhões perderam mais de três quartos das aulas presenciais. O sistema de ensino teve de se adaptar ao ensino à distância, mas a verdade é que existe uma grande desigualdade entre países e os do hemisfério norte conseguiram adaptar o sistema de ensino a um modelo virtual. Muitos países do hemisfério sul não têm acesso nem às tecnologias nem às redes de Internet.
O simples facto, nem que seja por um ano, de uma criança deixar de ter a possibilidade de ir à escola tem impactos profundos a curto, médio e longo prazo.
Com a deterioração de alguns centros de detenção espalhados pelo mundo inteiro, algumas crianças foram ainda lançadas à sua sorte e temos também um aumento significativo de menores que estavam no seu processo migratório, provavelmente irregular, e que foram forçadas, sem qualquer tipo de apelo ou agravo, a regressarem aos seus países de origem. É também importante destacar o efeito na saúde mental nas crianças que já estavam numa situação de stress.
Houve ainda um aumento de discriminação em relação aos migrantes em geral. Foram vistos como fonte de contaminação e muitos foram vítimas tanto nos países de destino como nos de origem quando tinham de regressar.
É preciso ainda relembrar que 80% das vacinas estão no hemisfério norte e apenas 20% no hemisfério sul o que mostra uma clara desigualdade no acesso à vacinação.
Além das crianças refugiadas e requerentes de asilo, que saem de situações de guerras ou outros conflitos, há muitos menores deslocados ou migrantes devido a catástrofes naturais...
O número significativo de pessoas e crianças que são deslocadas por consequências ambientais são muito preocupantes. Convém ressalvar que estas pessoas não são refugiadas e que grande parte das movimentações migratórias é intrarregional, grande parte dos migrantes procura países próximos do país onde estão.
Por exemplo, 80% dos fluxos migratórios em África é entre países africanos e na Europa entre países europeus. As pessoas procuram alguma estabilização, mas têm esperança de regressar ao seu país de origem e isto explica porque é que não procuram destinos muito longínquos.
Devemos preocupar-nos com os assuntos para os quais não há vacina e as alterações climáticas são um deles.
Independentemente de qualquer país que receba estas pessoas há domínios essenciais para falarmos de sucesso na integração. Não basta só abrir as portas, é importante garantir que as pessoas têm condições para se integrarem, como o acesso à saúde, educação, trabalho. E outro fator essencial é o acesso à língua.
Eu diria que a esmagadora maioria dos migrantes vem porque quer trabalhar e construir o seu projeto de vida. Não vem, ao contrário do que muitas vezes se ouve, para viver à custa de apoios sociais. Isto é a regra e não a exceção: as pessoas querem ter oportunidade de iniciar o seu projeto de vida.
Como se podem garantir que os direitos fundamentais de uma criança seja aqui, na Grécia, no Bangladesh ou em Moçambique sejam cumpridos de igual forma?
Temos de garantir que todos os sistemas de apoio têm como ponto principal e único o superior interesse da criança. São sistemas que se focam em garantir as condições mínimas àquelas crianças para que tenham acesso à saúde, segurança e educação.
A OIM trabalha em articulação com os países de origem, destino e trânsito e com os serviços sociais para construir um sistema que garanta os interesses da criança. Temos muita experiência e apoiamos os governos e instituições de acolhimento destas crianças e fomentarmos o desenvolvimento de boas práticas e de centros para garantam que, pelo menos, o percurso escolar continua a ser feito e de uma forma segura e com saúde.
Portugal disponibilizou-se para receber 500 crianças e jovens desacompanhados que estavam nos campos de refugiados gregos. Entre julho de 2020 e maio deste ano, o país recebeu 100 crianças, 22 delas no passado sábado. Como tem corrido este processo?
É muito importante nivelar expectativas em relação ao país ao mesmo tempo que se tenta perceber as preferências da criança.
As crianças sonham com Portugal com aquilo que ouvem lá fora, que é o país do Ronaldo e que há muitos Ronaldos, fixam os paradigmas nacionais de futebol e praias.
É natural que as crianças sonhem alto e o papel de todos nós é ajudá-las a acreditar que tudo é possível, mas que nem sempre os sonhos são realizáveis – mas às vezes sim. O que é preciso é ajudar e todos temos essa responsabilidade de garantir condições para que as crianças possam tomar as suas decisões e alcançarem, espero eu, os seus sonhos.
Este processo é sempre individual, no sentido de saber quais os projetos de vida de cada um. É muito importante ouvir as crianças. Quando chegam a Portugal já têm um perfil traçado. São menores desacompanhadas e o processo tutelar pertence aos tribunais, mas não significa que não tenham família. É preciso deixar claro que muitas destas crianças vieram de contextos de guerra e, portanto, muitas delas têm questões de foro de saúde mental que são precisas ter em conta quando se desenha o projeto de vida.
Há um trabalho fundamental de alguns procuradores e do governo, que criou uma task force para se definir como se constrói este projeto de vida, e que pode passar por estudar, por se autonomizar ou querer regressar para perto da família.
O feedback que eu tenho tido é que as crianças se têm sentido bem nos centros em que estão neste período de indefinição sobre o que querem fazer no futuro e o papel do Estado é ajudar nessa definição e capacitar aqueles que têm de lidar com essas crianças para que tenham em conta o contexto migratório de onde vêm.
Também há menores com núcleo familiar e de outros contextos a chegar a Portugal. Que perfis têm?
Temos um programa de reinstalação de menores com núcleo familiar que consiste na transferência de cidadãos que estão fora de um país na UE, a sua proteção foi concedida e serão reinstalados dentro de um país da comunidade.
Portugal tem dois programas em vigor, um com a Turquia e outro com o Egipto, e, neste contexto, já foram reinstaladas 180 crianças em 2019, 110 em 2020 e 42 neste ano até este momento.
Também há um programa de recolocação de menores de um país europeu para outro e neste contexto já recebemos de julho do ano passado até agora seis crianças, vão mais 13 chegar este mês.
Estamos no último mês do semestre em que Portugal assumiu a presidência do Conselho Europeu. Que recomendações têm sido feitas no sentido a proteção das crianças migrantes e das migrações em geral?
Em primeiro lugar temos recomendado o reforço dos programas de apoio ao retorno voluntário e à reinstalação, para as crianças e famílias em que o processo de integração não aconteceu e tiveram de voltar ao seu país de origem.
O essencial é que a Europa apoie a reintegração dessas pessoas, isto é, não basta apenas mandá-las de volta.
É preciso garantir que aquelas pessoas quando voltam aos seus países de origem ou de trânsito tenham condições para uma reintegração, para que volvidos alguns meses as mesmas pessoas não tentem novamente entrar e conseguirmos romper com este processo cíclico.
É perceber se é necessário apoio psicossocial e ajudar à criação de um plano de negócios, por exemplo. Mesmo quando não há um projeto, podemos estabelecer contactos no país de origem e, além da OIM local, há sempre outras entidades que podem apoiar.
Portugal tem um programa de apoio à reintegração e desde 2019, já apoiamos o regresso ao país de origem de 525 migrantes, sendo que destes 200 eram menores. A nacionalidade mais significativa é a brasileira e falamos de crianças com contexto familiar.
Há medidas a serem debatidas no que diz respeito ao controlo sanitário e de fronteiras?
Num futuro próximo, vamos ter de provar que temos condições de saúde para viajar e, portanto, o controlo sanitário vai ser essencial na gestão das fronteiras. É importante garantir que existem mecanismos, preferencialmente digitais, que permitam demonstrar esse controlo sanitário; depois, será necessário garantir a formação de quem está nas fronteiras e ainda garantir que a Europa Digital elimine procedimentos burocráticos.
Outros dos pontos em que temos insistido é o aumento das vias legais de migração. É importante garantir que os migrantes que estejam fora da UE possam entrar de forma legal e para isso é preciso criar mais mecanismos que o permitam, seja através do aumento das quotas de reinstalação ou outros programas.
O mais importante é garantir que em vez de apanhar um barco de forma irregular, aquelas pessoas possam pedir para entrar na EU de forma legal e há mecanismos para isso.
Precisamos ainda de criar rotas de migração laboral flexíveis e acessíveis. Em 2019, a UE teve saldo populacional negativo, ou seja, houve mais cidadãos a morrer do que a nascer e isto vai ter efeitos nomeadamente a nível laboral, inclusive em Portugal.
O caso de Portugal é dramático. Nós temos uma taxa de natalidade comparável a países em guerra e somos dos países mais envelhecidos da União Europeia.
Há poucas soluções para isto. A primeira é a criação de uma política de natalidade que incentive os jovens a quererem ter filhos e inevitavelmente criar mecanismos que permitam às pessoas que estão num país trabalhar noutro.
Não se trata de abrir completamente as fronteiras, mas sim de criar mecanismos em que o processo migratório seja feito em total segurança para todos e trazendo benefícios para os migrantes, que encontram o trabalho que procuram; para o país de origem, que passará a receber remessas, e para o de destino, porque ganha um trabalhador que contribui para a sociedade.