A Anagrama decidiu suspender por tempo indeterminado a distribuição de “El odio”, livro de Luisgé Martín sobre o crime de José Bretón, que há 14 anos matou e queimou os dois filhos, anunciou esta quinta-feira a editora espanhola em comunicado.

“A editora Anagrama informa que mantém voluntariamente a sua decisão de respeitar o pedido de medidas cautelares solicitado pelo Ministério Público para suspender a distribuição da obra”, lê-se no comunicado.

Uma decisão judicial veio, posteriormente, rejeitar esse pedido — anulando a obrigação de suspender a distribuição do livro —, mas ainda assim a editora decidiu manter o livro fora de circulação, explica a nota.

“A Anagrama confirma igualmente que o único autor da obra é o escritor e jornalista Luisgé Martín e nega que tenha sido efetuado ou venha a ser efetuado qualquer tipo de pagamento à pessoa condenada pelos crimes hediondos cometidos em 2011”, acrescentou a editora, uma das mais conceituadas da língua espanhola e promotora do prémio Herralde.

No mesmo comunicado, a editora expressa respeito absoluto pela mãe das crianças, Ruth Ortiz, e “lamenta a dor que a informação divulgada sobre a publicação e distribuição do livro lhe possa ter causado”.

A Anagrama também reconhece que, numa sociedade democrática, deve haver um equilíbrio entre a liberdade criativa como direito fundamental e a proteção das vítimas: “As obras que se inspiram em factos reais, como é o caso de ‘El odio’, exigem uma dose dupla de responsabilidade e respeito”.

Este livro, que se baseia no testemunho e confissão de José Bretón, que em 2011 matou e queimou os seus dois filhos — de 6 e 2 anos —, viu-se envolvido numa batalha judicial, quando, na semana passada, Ruth Ortiz solicitou a suspensão da publicação por violação ilegítima do direito à honra, à intimidade e à própria imagem dos menores falecidos, como escreve o jornal “El País”.

Após a denúncia apresentada pela mãe das crianças, também o Tribunal de Menores pediu a suspensão temporária da publicação do livro, mas o tribunal de primeira instância indeferiu este pedido.

No dia 21 de março, a Anagrama havia emitido um comunicado, no qual se afirmava “no direito”, tal como o autor, “de publicar esta obra”, e acrescentava que iria “aguardar as decisões dos tribunais”.

Nessa nota, a editora assegurava “ter plena consciência da monstruosidade dos crimes cometidos por José Bretón” e compreender a sensibilidade que podia ser despertada “pela exploração da condição de assassino que o escritor Luisgé Martín aborda” no livro.

“A literatura sempre lidou com realidades complexas e dolorosas, incluindo crimes que marcaram sociedades inteiras. De Emmanuel Carrère a Truman Capote, passando por tantos outros, os escritores sabem trabalhar com matérias difíceis e polémicas. A obra de Luisgé Martín tenta elucidar a violência extrema, as condições em que ocorre e as implicações filosóficas e éticas da crueldade como impulso humano, explorando como a sociedade e a psicologia individual convergem em atos que desafiam a moralidade”, justificou, na altura.

Segundo a Anagrama, o tratamento literário de “El odio” distanciava-se e rejeitava qualquer intenção que não fosse a de apresentar ao leitor "a maldade do assassino sem justificar ou desculpar o crime, mas, pelo contrário, mostrando o seu horror".

Nesse pressuposto, reafirmava o seu compromisso com “a responsabilidade editorial e a liberdade de expressão”, defendendo que “ambas devem coexistir” e que “a literatura pode e deve abordar essas questões sem ignorar a complexidade que elas representam”.

O livro “El odio” procura indagar a mente de José Bretón, as suas motivações e sentimentos, ao mesmo tempo que reconstrói o crime e narra a aproximação entre o autor e o criminoso, descreve o El País, especificando que Luisgé Martín manteve com o assassino uma relação telefónica e epistolar (cerca de 60 cartas), além de o ter visitado na prisão de Herrera de La Mancha, onde está a cumprir pena de 40 anos de prisão. O livro torna público, pela primeira vez, o assumir da culpa de Bretón.

Na sua denúncia, Ruth Ortiz revelou que tomara conhecimento através dos meios de comunicação de detalhes do livro, como a correspondência entre José Bretón e o autor, e um excerto pré-publicado, alegando que a divulgação "massiva" dessas informações lhe causaram grande dor e danos psicológicos.

A sua advogada destacou que Ruth Ortiz ficou horrorizada com a exposição pública da vida e homicídio dos seus filhos, com detalhes e comentários que não constavam da sentença, mas que aparecem no livro.

O El País dá ainda conta de que nem o autor da obra, nem a agência, nem a editora contactaram, em momento algum, Ruth Ortiz para recolher a sua versão, nem sequer a informaram sobre o livro.

O próprio Luisgé Martín, citado pelo jornal, justifica isso nas páginas de “El odio”: “Quando iniciei o projeto deste livro [...] tomei a decisão — talvez errada — de falar exclusivamente com José Bretón. O meu propósito era tentar compreender a mente de alguém que foi capaz de assassinar os próprios filhos, e para isso qualquer outro ponto de vista, especialmente o de Ruth Ortiz, seria uma distração, a quem, em todo caso, não me teria atrevido a mortificar com indagações”.

Após a denúncia de Ruth Ortiz, o autor do livro defendeu-se, num comunicado divulgado no final da semana passada, no qual garantia que “El odio” não dava voz a José Bretón, acrescentando: “Retira-lhe a voz, nega a sua explicação dos fatos, confronta-o com as suas contradições. O livro, na minha humilde opinião, serve para mostrar os labirintos da infâmia e da vileza de um assassino”.