
Os protestos na Geórgia têm décadas, mas intensificaram-se nos últimos 10 anos, pouco depois do "Sonho Georgiano" ter vencido as eleições pela primeira vez.
Fundado por um oligarca que fez fortuna na Rússia, o partido pró-russo prometia normalizar as relações com Moscovo, na sequência da guerra de 2008.
Mais de uma década depois, os georgianos acusam a formação no poder de servir os interesses do Kremlin, contrariando a vontade de 80% da população, que as sondagens dizem querer cortar com Moscovo e integrar a união europeia e a NATO. Ambições idênticas às da Ucrânia.
Antiga república soviética, a Geórgia enfrentou, logo após a independência, em Abril de 1991, rebeliões apoiadas pela Rússia, nas províncias separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia.
Os conflitos fizeram dezenas de milhares de mortos e terminaram com acordos de cessar-fogo que colocaram nas duas regiões forças de manutenção de paz russas.
Guerra relâmpago
Depois de mais de uma década de tensão e perante o intensificar da presença militar russa no país, em agosto de 2008 a Geórgia lançou uma ofensiva sobre a Ossétia do Sul para tentar reconquistar o território. Alegando a necessidade de proteger os "seus cidadãos", Moscovo atacou o país por terra e ar.
Em apenas cinco dias expulsou as tropas georgianas da Ossétia do Sul e da Abecásia, e ocupou outras regiões, chegando às portas da capital, Tbilisi. A guerra relâmpago terminou com um cessar-fogo e fez mais de mil mortos e 30 mil deslocados.
O governo georgiano teve de construir à pressa povoações para acolher os que fugiram da guerra. A família Basishvili vive há quase 17 anos numa dessas localidades empobrecidas da Geórgia e ainda não perdeu a esperança de voltar a casa.
"Queremos voltar, mas sabemos que isso só pode acontecer quando houver paz no nosso país", lamenta Luiza Basishvili.
Centenas de quilómetros de arame farpado que dividiram comunidades ao meio
A Rússia ocupa já 22% do território da Geórgia. Depois do conflito de 2008, Moscovo declarou unilateralmente a independência da Ossétia do Sul e da Abcásia e estabeleceu linhas de demarcação a que chama fronteiras. São centenas de quilómetros de arame farpado que dividiram comunidades ao meio e deixaram famílias separadas. Moscovo tem três bases militares na Geórgia e mais de três mil soldados.
Aos poucos, tem vindo a alterar as linhas de demarcação e a anexar território, violando a integridade territorial e a soberania do país vizinho. As tropas invasoras estão a apenas 40 quilómetros da capital.
Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, em Fevereiro de 2022, milhares de russos atravessaram a fronteira e instalaram-se na Geórgia. Não precisam de visto para entrar, viver ou trabalhar na antiga república soviética.
Para além da generosa política migratória, Tbilisi facilita a criação de uma empresa em apenas dois dias, o que explica que, no centro da capital georgiana, haja ruas onde quase todos os bares, cafés e livrarias são russos.
“O mundo é muito grande, não venham para aqui”
A comunidade imigrante replicou na Geórgia, com temperaturas mais amenas, o estilo de vida que tinha no país de origem. Abriu escolas, negócios, canais de televisão.
Uma invasão pacífica que fez disparar os preços e a inflação, e que as sondagens dizem desagradar a mais de 66% dos georgianos. "O mundo é muito grande, não venham para aqui", pede a artista plástica Kristo Talakhadze. "Já basta que a Rússia esteja a ocupar um terço do nosso território".
Neste cenário de crispação, alimentado pela Rússia, o governo fez aprovar, em Abril de 2024, depois de quase um ano de contestação nas ruas, a chamada "Lei da Transparência" que impõe restrições aos média e às organizações não governamentais que recebam apoio financeiro de outros países. Obriga-as a registarem-se como "agentes estrangeiros" e a partilharem com o governo informação sigilosa, tal como acontece na Rússia desde 2012.
"Nós adoramos a liberdade e viver em liberdade", resume a escritora Nana Ekvtimishvili. "É por isso que, apesar de sermos um país pequeno, nunca aceitámos o domínio soviético".
Entre a democracia europeia e o autoritarismo de influência russa
Em outubro de 2024 os georgianos foram às urnas para as eleições mais importantes de sempre no país. Para escolher entre a democracia europeia e o autoritarismo de influência russa. Numa votação que os observadores independentes dizem não ter sido livre nem justa, o "Sonho Georgiano" reclamou vitória com quase 54% dos votos.
Bruxelas responsabilizou o partido pró-russo pelo agravamento da crise democrática no país e o executivo respondeu suspendendo as conversações de adesão à União Europeia, pelo menos até 2028.
A decisão agigantou ainda mais os protestos. Apesar da brutalidade policial, das prisões arbitrárias, dos espancamentos e tortura sob detenção, denunciada pela Amnistia Internacional, há quase três meses que milhares de pessoas contestam diariamente nas ruas da Geórgia um executivo que não reconhecem e que acusam de querer arrastar o país de volta para o passado soviético.
"Os protestos anteriores tinham sempre um líder. Para a Rússia, era fácil lutar contra esse líder", explica Nana Ekvtimishvili. "Mas agora, todos são líderes. Novos, velhos, homens, mulheres. Todos podem falar e expressar claramente para onde queremos ir. É isso que nos vai levar à vitória. Pelo menos é nisso que acreditamos".
De acordo com a Amnistia Internacional, dos 460 detidos desde o início dos protestos, pelo menos 300 foram brutalmente espancados. Há 53 presos políticos, detidos há meses sem acusação. Vários em greve de fome. Entre eles, dois jornalistas enfrentam penas que podem chegar aos sete anos de prisão.
Ficha Técnica:
Jornalista: Susana André
Imagem: João pedro Fontes
Edição de imagem: Tomás Pires
Colorista: Rui Branquinho
Pós-Produção áudio: Edgar Keats