Na segunda metade do século XIX, Otto von Bismarck unificou a Alemanha com ferro, sangue e uma visão implacável do realismo político. Inspirada no pensamento de Bismarck, a Realpolitik assenta na arte de governar com base na realidade dos factos e na lógica do poder, onde o que conta não são só os ideais proclamados, mas os resultados concretos e a capacidade de responder às necessidades. O “Chanceler de Ferro” moldou o destino de um país dividido, não com consensos fáceis, mas com uma determinação fria e estratégica que marcou para sempre a História europeia.

Hoje, num tempo de fragmentação geopolítica, incerteza económica e declínio industrial, a Alemanha volta a cruzar-se com um momento de viragem. A ascensão de Friedrich Merz ao cargo de chanceler não evoca apenas uma nova liderança: simboliza o regresso de uma política de força, clareza e ambição. Como Bismarck, Merz surge como o arquiteto de uma reconfiguração nacional que poderá redefinir não só a Alemanha, mas o próprio equilíbrio europeu. A sua chegada ao poder assinala o fim de uma era e o início de outra — uma transição marcada não por continuidade, mas por rutura.

Merz e Merkel são, curiosamente, filhos políticos do mesmo mentor: Helmut Kohl. Ambos foram delfins do antigo chanceler e símbolos da reunificação alemã. Mas é precisamente aí que as semelhanças terminam. Merkel, vinda da antiga República Democrática Alemã, representava a prudência do Leste, a cautela de quem cresceu sob vigilância e desconfiança. A sua liderança foi marcada por moderação, pragmatismo e uma abordagem incremental à governação. Merz, oriundo da Renânia do Norte-Vestefália — coração industrial do Ocidente alemão —, traz consigo uma visão mais competitiva, liberal e musculada do Estado. Se Merkel venceu Merz dentro da CDU pela via da subtileza e do silêncio estratégico, Merz regressa para liderar uma rutura com o seu legado.

A sua eleição e posterior vitória nas eleições de fevereiro representam não só o regresso de uma figura que esteve mais de uma década afastada da política ativa como o regresso de uma linha ideológica até agora secundarizada. Merz afastou-se do Bundestag em 2009, após choques internos com Merkel, e dedicou-se ao sector privado, nomeadamente à presidência da BlackRock Alemanha. Esse percurso fora da política conferiu-lhe um olhar pragmático sobre a economia, bem como uma liberdade ideológica que hoje o diferencia de outros líderes europeus.

A sua agenda é ambiciosa e clara: retirar a Alemanha do marasmo económico e industrial em que mergulhou após anos de crescimento estagnado, excesso de regulamentação e dependência energética externa. Os quatro pilares da sua governação — economia, indústria, defesa e política externa — apontam para um país que pretende recuperar o protagonismo perdido e liderar a Europa em tempos de incerteza.

A primeira medida simbólica foi contundente: um pacote de 500 mil milhões de euros de investimento público, rompendo com a ortodoxia orçamental que, durante décadas, dominou a política alemã. Esta decisão representa um corte com a “política da contenção” e visa modernizar infraestruturas críticas, acelerar a transição energética, e posicionar a Alemanha como líder em sectores como a inteligência artificial, a mobilidade elétrica e as tecnologias verdes e militares. É também um sinal de que Merz não tem receio de usar o poder do Estado para reposicionar a Alemanha no mapa industrial do século XXI.

No domínio da defesa, Merz tem sido ainda mais explícito. O aumento significativo do orçamento militar, bem acima da meta dos 2% do PIB recomendada pela NATO, marca uma mudança estrutural na postura externa da Alemanha. A frase que proferiu numa conferência, quando confrontado com a possibilidade de os Estados Unidos deixarem de garantir a segurança da Europa, resume bem o espírito do seu tempo: “Vamos chorar? Vamos abraçar-nos uns aos outros? Ou vamos agir e, com determinação, vencer?”

Merz não acredita na Europa como apêndice dependente de Washington. Defende, pelo contrário, uma verdadeira autonomia estratégica europeia, com uma política de defesa comum eficaz, coordenada e capaz de dissuadir ameaças externas, nomeadamente da Rússia de Putin. Esta visão implica maior investimento em capacidades militares, mas também uma liderança política capaz de unir os Estados-membros em torno de um objetivo comum.

No plano internacional, o novo chanceler tem procurado reanimar o tradicional eixo franco-alemão. Os seus encontros com Emmanuel Macron demonstram uma convergência renovada nas áreas da defesa, transição energética e política industrial. Contudo, ao contrário de Merkel, cuja relação com Paris oscilava entre a condescendência e a diplomacia calculada, Merz parece disposto a caminhar lado a lado com a França, partilhando riscos e ambições. A sua postura face à Rússia é firme: apoio incondicional à Ucrânia, defesa intransigente da integridade territorial europeia e um regime de sanções alargado contra Moscovo. Merz compreende que a Alemanha do século XXI já não pode esconder-se atrás da sua história do século XX. A liderança implica responsabilidade, e essa passa, hoje, por enfrentar de frente os inimigos da democracia.

Mas talvez o desafio mais complexo de Merz seja interno: refundar a CDU. Durante anos, o partido de Konrad Adenauer e Helmut Kohl tornou-se um partido centrista sob Merkel, perdendo identidade e eleitores para a Alternativa para a Alemanha (AfD, extrema-direita). Merz pretende reconquistar esse eleitorado, reposicionando a CDU como partido de direita moderna, conservadora nos valores, liberal na economia e assertiva na política externa.

Este reposicionamento não estará isento de tensões. Dentro da Alemanha, o aumento da despesa pública poderá gerar resistências entre os sectores mais fiscalmente conservadores. Na Europa, a sua liderança poderá confrontar-se com países menos dispostos a seguir uma via de maior integração na defesa ou de investimento público alargado. Merz não parece disposto a recuar. O seu estilo é direto, firme e determinado.

A História mostra-nos que a Alemanha, quando muda de rumo, muda também a Europa. Merz é, nesse sentido, um turning point não apenas para o seu país, mas para o continente como um todo. Se for bem-sucedido, poderá devolver à Alemanha o papel de âncora política, económica e estratégica da União Europeia. Se falhar, arrisca-se a aprofundar divisões internas e europeias.

Para já, porém, Friedrich Merz é o rosto de uma nova era. Mais dura, mais clara, mais exigente. Uma era em que a Europa terá de decidir se continua a viver da falsa paz ou se, como Merz propõe, assume a responsabilidade de a garantir — com os seus próprios meios e com a sua própria vontade.