
Responsabilizar Bruxelas por tudo o que corre mal tornou-se um automatismo: da lentidão das decisões à suposta desconexão com os cidadãos, do excesso de regulação à impotência geopolítica, passando pela inércia estratégica. A crítica, embora compreensível, é, em grande medida, um equívoco.
O verdadeiro bloqueio da União Europeia não emana de Bruxelas, mas das capitais. A União é, em última instância, o reflexo das vontades dos seus Estados-Membros. Quando as mesmas divergem radicalmente, o sistema paralisa. A Comissão Europeia hesita quando os governos hesitam. O Conselho entra em impasse quando os líderes fogem das decisões difíceis. A burocracia preenche o vazio quando a política desaparece. Assim, a hesitação não surge de um labirinto institucional, mas de uma União Europeia condicionada a avançar apenas ao ritmo imposto pelas capitais.
O caso da pandemia foi paradigmático. Quando os governos nacionais o quiseram, houve emissão comum de dívida. Criaram-se mecanismos de solidariedade impensáveis meses antes. Aprovaram-se apoios à escala da crise. Não foi Bruxelas a impor nada: foram os próprios governos a exigir, com o impulso decisivo de uma presidente da Comissão que soube ler o momento. A lição é clara: quando há vontade política, há Europa. Quando não há, subsiste apenas a burocracia. Hoje, porém, o risco é outro: a recaída na inércia. A hesitação quanto a um financiamento comum da defesa ilustra bem esse perigo. O Next Generation EU foi um marco histórico, mas continua a ser uma exceção. Sem surpresa, os Estados-Membros “frugais” continuam a ter dúvidas sobre este instrumentos – com a recente exceção da Dinamarca – enquanto o novo Chanceler alemão já veio duvidar da bondade de uma nova emissão de dívida comum, salvo em situações excecionais.
Mas, haverá momento mais excecional do que este para a Europa? Qual será a posição em Bruxelas do próximo primeiro-ministro de Portugal? No campo geopolítico, o bloqueio é ainda mais patente. A resposta à invasão russa da Ucrânia foi firme, mas ficou aquém: faltou-lhe escala, clareza e uma estratégia sólida. A divisão europeia face a Gaza é ensurdecedora, pondo em evidência uma União sem voz ou influência, enquanto a Hungria continua a minar o consenso europeu em questões externas, com total impunidade.
Sem instrumentos comuns – orçamentais, militares, energéticos, industriais – a Europa continuará a reagir, em vez de agir. O discurso da autonomia estratégica, repetido ad nauseam, continua a chocar com a ausência de recursos. O Global Gateway é disso exemplo: grandes promessas, impacto reduzido. Sem um orçamento europeu digno desse nome não há potência, apenas narrativa. Mesmo os avanços, como o mercado digital único ou a transição verde encontram-se ameaçados por uma nova vaga de nacionalismos económicos, que vão desde os impostos alfandegários de Trump às ambições expansionistas da China.
O mais desconcertante é que a culpa continua a ser atribuída a Bruxelas. Os governos escondem-se atrás da Comissão. O Conselho apresenta-se como mero observador. E os cidadãos, alimentados por falsas narrativas e propaganda, afastam-se. A crítica à Europa “distante” é alimentada, ironicamente, pelos que se recusam a aproximá-la das soluções reais. Não se trata de ignorar os problemas institucionais ou os excessos tecnocráticos de Bruxelas. Contudo, esses são apenas sintomas, não as causas. A raiz do problema é política: a recusa das capitais em estabelecer um poder europeu à altura do seu potencial. A obsessão pela soberania – inconsequente perante o peso dos Estados Unidos ou da China – bloqueia a construção de uma verdadeira capacidade europeia.
A União Europeia não precisa apenas de reformas institucionais. Precisa, sobretudo, de coragem política. De líderes que compreendam que o interesse europeu não é incompatível com o interesse nacional, mas condição essencial para a sua sobrevivência. Que assumam que, num mundo de esferas de influência, nenhuma capital terá força para defender a sua prosperidade e segurança sozinha – nem mesmo a Alemanha de Merz. Letta invoca a estrutura, Draghi a competitividade, Niinistö a proteção. Mas o corpo europeu continua desalinhado, cada membro avançando com vida própria. Ou se reconhece que mercado, economia e defesa são partes do mesmo problema – e solução – ou continuaremos a acumular relatórios onde devia haver decisões. Estará o próximo Governo alinhado com este diagnóstico?
O mercado interno continua longe de funcionar como motor de coesão. A fragmentação entre Estados-Membros transforma a integração económica numa corrida de obstáculos redundante, onde devia haver fluidez e escala. A competitividade sofre do mesmo mal: ausência de investimento coordenado e de uma política industrial partilhada. Insistir na lógica do salve-se quem puder implica aceitar o declínio em vez de o contrariar. Na defesa, a promessa de autonomia estratégica choca com a ausência de coesão económica e de vontade. A segurança exige meios, sim, mas, sobretudo, confiança, que não se constrói com hesitações.
Numa Europa paralisada pelas suas contradições, Jean Monnet continua a ser o exemplo a seguir. Longe de ceder a ideologias ou planos imutáveis, dedicou-se a criar estruturas institucionais que, de forma gradual, estabelecessem uma solidariedade prática e duradoura. Monnet compreendia – devido à sua experiência na Sociedade das Nações – que o verdadeiro avanço da integração europeia não reside em compromissos pontuais ou vitórias isoladas, mas na capacidade de criar uma união viva entre os cidadão europeus. Era plenamente consciente de que sem uma visão estratégica que ligasse as várias esferas da Europa, a fragmentação impediria o progresso. Hoje, para que isso aconteça, é imperativo reinventarmo-nos, recusando o imobilismo. O que nos é exigido, neste momento, é coragem para ultrapassar os limites do convencional, aceitar as contradições e encontrar nelas o impulso para soluções que não apenas resolvam, mas transcendam. Mais do que gerirmos crises, devemos ser capazes de transformar o presente, possibilitando um futuro em que a Europa mantenha a sua relevância.
Por que não começar por onde mais sentido faz? Pela consolidação do mercado interno através de uma estratégia industrial concertada. A atual fragmentação mina a competitividade europeia, dilui o potencial coletivo e impede a construção de uma verdadeira economia de escala. Uma política comum de inovação, assente num mercado industrial integrado, permitiria otimizar recursos, estimular a produtividade e posicionar a Europa com solidez no palco global: liderando, em vez de perseguir a nova revolução tecnológica. E por que não dar o passo seguinte com igual determinação? Uma União Fiscal robusta, capaz de responder em uníssono às crises que inevitavelmente nos atingem?
A ausência de uma arquitetura orçamental coesa torna cada resposta nacional um gesto isolado e por vezes inconsequente. Um sistema fiscal partilhado permitiria alinhar prioridades, proteger o investimento público e garantir à União músculo orçamental real, pronto para enfrentar desafios simétricos e assimétricos com eficácia e solidariedade. E porque não reforçar o euro como moeda de reserva global? Uma genuína União dos Mercados de Capitais, que mobilize poupança e investimento à escala europeia, seria decisiva. Uma integração financeira mais profunda abriria espaço a investimentos em sectores estratégicos – da transição energética às infraestruturas digitais – e permitiria emitir dívida comum com credibilidade e escala. Desta forma, o euro ganharia peso nos mercados globais, tornando-se não só instrumento económico, mas também símbolo de estabilidade e relevância.
Finalmente, por que não assumir a defesa europeia como desígnio coletivo – e não como retórica de circunstância? A segurança do continente não pode continuar refém da vontade alheia, por mais próxima que nos seja. Um comando autónomo, articulado com a NATO, mas centrado numa coligação de Estados dispostos a agir – incluindo as potências nucleares do Reino Unido e da França – permitiria à Europa afirmar-se como ator estratégico convincente. Uma defesa partilhada não substitui as alianças: reforça-as. Mas, sobretudo, oferece à União aquilo que mais lhe falta: autonomia estratégica, voz própria e presença global.
Contrariamente ao que nos querem fazer crer durante esta campanha, as perguntas não devem ser dirigidas apenas a Bruxelas, mas, sobretudo, a Lisboa.
As respostas às questões do nosso tempo não devem vir do Berlaymont, mas de São Bento. A União será definida pelo que os seus Estados-Membros fizerem dela. Sem parlamentos que deliberem, governos que proponham e cidadãos que se comprometam, não haverá integração – apenas resignação e um continente condenado à irrelevância.
Ainda há tempo.