
Nada do que fazia lhe dava prazer e também já não conseguia trabalhar com a mesma concentração e eficácia, o que aumentava a ansiedade, especialmente porque tinha em mãos um projeto importante. Na altura, enquanto presidente do Centro de Vida Independente, uma organização gerida exclusivamente por pessoas com deficiência que promove a concretização de direitos humanos e civis destas pessoas, Diogo Martins liderava o primeiro projeto-piloto de assistência pessoal para pessoas com deficiência e sentia que não podia falhar.
Tratava-se de um projeto com "grande impacto social e político" e era crucial garantir que tudo estava bem feito, sem falhas e imune a qualquer tentativa de descredibilização. A pressão era enorme, a carga de trabalho também, e isso afetava a mãe, sua cuidadora na altura, que ficava ainda mais limitada e sem tempo para si. Diogo Martins sentia-se culpado, tinha dificuldade em gerir emoções e andava também mais irritado, o que tornava as interações com os outros mais tensas e impulsivas. Em pouco tempo, percebeu que não estava bem e teve de pedir ajuda psicológica, conta o especialista em acessibilidade, de 35 anos, em entrevista ao podcast "Que Voz é Esta?", num episódio dedicado à deficiência e saúde mental.
Vários estudos comprovam que pessoas com deficiência enfrentam níveis de stress e sofrimento psicológico muito superiores aos da população em geral. Diana Santos, psicóloga clínica e atual presidente do Centro de Vida Independente, destaca que estas pessoas "estão entre os grupos oprimidos que mais sofrem microagressões", particularmente hoje em dia. "Até há pouco tempo, não havia propriamente crimes de ódio contra a nossa população, mas temos assistido a discursos e atitudes contra pessoas com deficiência."
Essas agressões, explica, "têm por base a discriminação relacionada com a funcionalidade da pessoa, seja física ou cognitiva". E são visíveis na "condescendência, no assistencialismo, na infantilização, no ato de duvidar das suas capacidades, ou até na forma como se olha para a pessoa com deficiência e se vê apenas o peso que representa para a sociedade, ignorando o seu contributo e potencial". Todas estas experiências "causam sofrimento".
A psicóloga chama ainda a atenção para outra questão: "Há pessoas com deficiência que não conseguem levantar-se sozinhas, garantir a sua higiene ou alimentação. Muitas vivem num estado fusional com a família, sobretudo com as mães, por um período muito prolongado, mais do que seria desejável para qualquer pessoa."
Essa dependência – seja financeira, seja relacional – tem impactos não só na própria pessoa, mas em toda a família. "Afeta a autoestima, porque a pessoa sente que é um peso. Vê que a família perde rendimento, que os pais – sobretudo as mães – muitas vezes têm de deixar os empregos, abdicam da vida social e das próprias necessidades para cuidar dos filhos."
Muitas vezes, as barreiras sociais afetam mais a vida das pessoas com deficiência do que as próprias limitações físicas ou intelectuais, aponta também Diana Santos. "A sociedade ainda aceita que uma pessoa com deficiência não consiga circular livremente na sua cidade por falta de transportes adaptados e que fique na rua enquanto as outras entram num café. Isto não acontece com mais nenhum grupo."
Diana Santos alerta ainda para um paradigma que persiste: encara-se a deficiência como um problema a ser corrigido ou reabilitado, em vez de se garantir que as pessoas possam viver de forma funcional e integrada na sociedade, independentemente das suas limitações. Este modelo contribui para a despersonalização das pessoas, forçando-as a procurar incessantemente uma "cura" ou melhorias físicas. E, quando isso não é possível, instala-se a frustração, afetando o seu bem-estar e saúde mental.
"Dizemos aos pais que os filhos têm de passar horas em terapias. Que não podem ter deformações e, por isso, devem ser submetidos a tratamentos dolorosos e a operações horríveis para crescerem mais um bocadinho, conseguirem esticar as pernas, endireitarem as mãos ou ficarem mais 'direitas'. Quando, na verdade, o mais importante seria dar espaço às pessoas para descobrirem o seu lugar e terem um papel útil e feliz numa sociedade que devia estar preparada para todas as pessoas. Esta é, talvez, uma das realidades mais penosas que ainda enfrentamos."
Diogo Martins, que é atualmente conselheiro para o cliente com necessidades específicas na CP, onde trabalha para melhorar a acessibilidade dos serviços ferroviários, e faz também parte de uma rede europeia de especialistas em políticas inclusivas, reconhece "alguns progressos" nesta área, mas concorda com a perspetiva de Diana Santos. “A questão está nos tratamentos que somos incentivados a fazer. Historicamente, sabe-se que alguns nem têm um fundamento sólido. Fala-se muito em reabilitação, mas reabilitar como? O que é que a pessoa realmente precisa?" questiona.
Para Diogo Martins, esta realidade é ainda mais evidente para quem nasce com uma deficiência. “Ao longo da vida, somos confrontados com esta ideia de que temos de fazer tratamentos, mas ninguém explica bem para quê. Muitas destas doenças não têm cura, são evolutivas." Além disso, destaca o impacto social dessas crenças. “Nos tratamentos, quando são dolorosos, dizem-nos logo: ‘Os homens não choram’. E esta frase acompanha-nos a vida toda”.
Outro dos temas abordados no episódio foi o impacto dos papéis de género na perceção da deficiência. A sociedade associa certas características e expectativas a homens e mulheres, o que influencia a forma como as pessoas com deficiência são vistas e tratadas.
Nesta temporada do podcast "Que Voz É Esta?", as jornalistas Joana Pereira Bastos e Helena Bento exploram emoções como culpa, vergonha ou raiva, com mais casos reais e com a participação de especialistas na área da saúde. Ouça aqui mais episódios: