Um dos grandes argumentos dos defensores europeus, e dos que dizem que compreendem as posições políticas, de Donald Trump é que a Europa é a grande responsável pela sua própria situação. A Europa, criticam, depende demasiado da América e é pouco como a América. Pelo que defendem uma Europa mais forte economicamente, mais capaz em termos de segurança e mais afirmativa. E, portanto, inevitavelmente mais federal e mais autónoma dos Estados Unidos. Exactamente o contrário do que os atlantistas tradicionais defendem. E muito parecido com o que os federalistas e os anti-americanos do continente costumam defender. Não é tão estranho quanto parece.
A 24 de Fevereiro de 2022, Vladimir Putin deu um dos maiores impulsos à integração europeia dos últimos anos. A enorme maioria dos europeus, de Helsínquia a Lisboa, de Atenas a Dublin, percebeu que a agressão russa era uma ameaça, também, à segurança europeia, que a paz não era um adquirido e que precisava de ser protegida, e que o problema de um extremo da Europa era o problema da Europa toda. Por um momento, que não desapareceu completamente, tivemos a consciência de que a fronteira externa europeia é uma fronteira comum.
O apoio ao apoio à Ucrânia tem tido erosão (nunca foi exactamente unânime e tem variações nacionais relevantes) e alguns custos eleitorais, mas a grande maioria dos governos e dos europeus mantém-se ao lado dos ucranianos. Segundo os dados do eurobarómetro de Dezembro, os europeus continuam a defender apoio humanitário (89%), acolhimento de refugiados ucranianos (84%), apoio financeiro e sanções à Rússia (72%), a concessão de estatuto de candidato à adesão à União Europeia (61%), e fornecimento de equipamento militar (61%). Passados três anos, estes números são fortes. Mais fortes do que muitos esperavam. E nas lideranças políticas, a solidez da posição manteve-se.
A invasão da Ucrânia teve uma primeira consequência política interna: o reforço do papel dos países nórdicos, bálticos e do centro e leste europeu, que olham para a segurança, e para a Rússia especificamente, de uma maneira diferente.
A par desse redesenhar do equilíbrio geográfico europeu, desde a invasão, foi possível desenvolver um discurso favorável a maior investimento militar comum. Não estamos a falar de um exército europeu, mas falamos de uma capacidade europeia de segurança como nunca falámos. E foi possível desenvolver um discurso comum sobre alguma política externa e, até, sobre o alargamento como forma de proteger e projectar a Europa no Mundo. Tudo isto são novidades.
Ao mesmo tempo, a resaca da pandemia promoveu um processo de crescente intervencionismo e proteccionismo, apoiado pelo proteccionismo e intervencionismo americano, que vem desde a Administração Biden e prossegue com força na de Trump, e alimentado por uma convicção crescentemente generalizada de que a integração económica com a China foi longe de mais e que Pequim é um parceiro económico de que se deve desconfiar e de que nos devemos afastar e reduzir a dependência. A reindustrializção, de que tanto se fala na Europa, é muito isto: permitir, e mesmo incentivar, o apoio público para diminuir a dependência industrial da China. E competir com a América.
É assim que chegamos a 2025, e à posse de Trump 2.0. Com uma Europa com mais preocupações comuns, com maior convicção de que precisa de ter uma voz própria no mundo e convicta de que necessita de ser mais competitiva. Colectivamente. Enquanto Europa. Sendo que, antes que os entusiastas de uma americanização europeia se alegrem, ninguém na Europa, muito menos os populistas de direita e de esquerda que adoram o Estado, está disponível para cortar no modelo social europeu, que é parte do que torna a Europa menos competitiva, dirão os seus detractores mais liberais ou libertários, e assegura a paz social, dirão os seus defensores à esquerda e à direita.
A reentrada em cena de Trump vem reforçar este processo. Para ter a tal Europa menos dependente da protecção americana e mais capaz economicamente enquanto um bloco, a política europeia assume como sua a visão mais francesa da Europa. Autonomia estratégica é um conceito que Emanuel Macron tem defendido desde o primeiro dia da sua primeira presidência. Uma visão que sempre pareceu querer colocar os europeus numa posição quase intermédia entre os Estados Unidos da América e a China. Uma coisa inaceitável para os atlantistas. Mas é difícil ser-se atlantista como antes quando o aliado do outro lado do Atlântico fala de impôr direitos alfandegários, em vez de os querer reduzir, questiona o artigo 5º da NATO, destrata os líderes europeus, promove, ou deixa que alguém da sua Administração promova, os adversários extremistas dos governos europeus, e admite ocupar o território de um país da União Europeia.
Os trumpistas, e os que dizem que não são mas parecem, acusam a Europa de ser fraca e dependente. Os federalistas também. Uns e outros vão promover uma Europa mais integrada e menos atlântica. Uns, percebe-se porquê. Os outros, é só por cegueira e cumplicidade ideológica.