Não é inédito nem inaceitável que um zilionário americano se pronuncie sobre política e eleições europeias. Não é inédito ou inaceitável que um meio de comunicação social privado americano use a sua influência para promover uma visão do mundo, a visão americana. E também não será inédito, e para alguns e conforme os casos não será inaceitável, que alguém ligado à Administração americana influencie o destino de uma democracia europeia. Quer isto, então, dizer que o facto de o dono do ex-Twitter, futuro membro da Administração Trump e homem mais rico do mundo não fez nada que justifique as críticas, excitação e comentários preocupados na Europa? Não.
Elon Musk acusa o Primeiro Ministro britânico de liderar um governo tirânico, defende que o partido de extrema-direita alemão, a AfD, é o único que pode “salvar a Alemanha” e goza pubicamente com Zelensky, quando não se lhe conhece uma crítica relevante a Putin, com quem se sabe que mantém conversas regulares. Tudo isto somado é inédito, triste e grave.
Entre Musk e, para aproveitar os exemplos acima, Bill Gates, Ted Turner (o fundador da CNN) ou Frank Carlucci (o embaixador americano em Lisboa que apoiou Mário Soares contra os comunistas) há três grandes diferenças.
Elon Musk tem uma plataforma de comunicação única, que não é, ao contrário do que tenta fazer crer, uma mera caixa de correio que recebe e entrega as mensagens de cada um. E não é controlável, escrutinável ou passível de controlo judicial eficaz. Musk e o algoritmo que domina o X escolhe as mensagens que têm menos e mais audiência. Desde logo as suas.
Musk fará parte da administração Trump, como co-responsável por um departamento da suposta eficácia governativa e, mais importante, senta-se ao lado do futuro Presidente quando este fala com líderes mundiais, como Zelensky.
E Musk promove partidos assumida e inegavelmente anti-democráticos (tanto que até Marine Le Pen se recusou a sentar na mesma bancada no parlamento europeu).
Esta tripla é inédita e deveria resolver qualquer dúvida (que fosse sincera) sobre se Trump e companhia representam um perigo para a Europa. A resposta é não. Não é para a Europa. É para o Ocidente, o nosso mundo. Quem o nega, ou é muito ignorante ou é activamente cúmplice.
O facto de Elon Musk dizer o quer que seja sobre o Primeiro Ministro Britânico é do domínio da liberdade de expressão. O facto de Musk achar que um partido de extrema-direita, que até a extrema-direita convencional (admitindo que o conceito faz sentido) abjura, é a salvação da Alemanha é, ainda, do domínio da liberdade de expressão. Ser estrangeiro não altera nada disso. A quantidade de alemães que opinou sobre as eleições americanas e disse o que pensava sobre Kamala Haris ou Donald Trump será na ordem dos milhões certamente. Qual é, então, o problema? São dois, os problemas.
Em primeiro lugar, há um problema legal. Saber em que medida o uso que Musk faz e deixa fazer do X obedece à legislação europeia. Saber se o valor do benefício que Musk oferece aos partidos de extrema-direita que apoia (o valor comercial da promoção que lhes faz no ex-Twitter) não viola as regras sobre financiamento político. Saber se o que Musk diz fica sempre dentro do limite da liberdade de expressão ou se ultrapassa e é verdadeiro incitamento ao ódio. Tudo isso é matéria legal. Que a demorada investigação da Comissão Europeia um dia resolverá. Ou não. Mas há outro problema, que é político e é muito mais sério.
A História do Ocidente nos últimos 70 anos, mesmo desde antes do fim da Segunda Guerra Mundial é, fundamentalmente, a História do sucesso da relação transatlântica. Claro que nem sempre foi idílica, que muitas vezes a esquerda europeia detestou todo e qualquer líder americano republicano, que muitas administrações foram mais distantes da Europa que outras, que a América não é virginal ou pura. Mas nunca uma administração americana, os seus apoiantes e, ao mesmo tempo, o homem mais rico, estiveram, na Europa, unidos a promover partidos e gente que defende o oposto do que o Ocidente é: para começar, quem ataca a democracia liberal. Já toleraram. Já mantiveram. Mas nunca promoveram como Musk agora promove os seus brinquedos anti-democráticos europeus.
A obsessão com o “combate cultural” faz com que à extrema-esquerda se ache que tudo o que é Tradição deve ser destruído, e faz com que à extrema-direita se ache que tudo o que não é Tradição é woke, vai trazer Sodoma e Gomorra e justifica o apoio entusiasmado de quem quer que se lhe oponha. Esta divergência profunda, que deveria estar nas franjas do espaço político, ocupou o palco e domina agora o debate. E é por isso, por animar esse confronto, favorecendo um dos lados, que Musk é tão perigoso. E que Trump, que o permite, não é menos.
Há dezenas de livros de escritos sobre a decadência e morte do Ocidente. A maior parte parecia ser ficção, ou pelo menos um manifesto exagero. A realidade, porém, está a conseguir ser mais criativa. E, provavelmente, desgraçadamente mais eficaz.