Há novas pistas para resolver o mistério de como o nosso cérebro consegue guardar novas memórias sem esquecer as antigas.
Os olhos podem ser a janela da alma, mas são as pupilas que podem desvendar como o cérebro forma memórias duradouras sem apagar as antigas. Investigadores da Universidade Cornell, em Nova Iorque, descobriram que este fenómeno ocorre durante o sono, em fases bem definidas.
Uma investigação com ratinhos de laboratório, publicada na revista Nature de 1 de janeiro, revela que o cérebro processa as novas e as antigas memórias em duas fases diferentes do sono. Desta forma, impede que as memórias se misturem.
Partindo do princípio que esta descoberta se confirma noutros animais, também o cérebro dos seres humanos funciona desta maneira. "Aposto todo o meu dinheiro que esta diferenciação também ocorrerá nos humanos”, afirma György Buzsáki, neurocientista da Universidade de Nova Iorque. Isto porque a memória é um sistema evolutivamente antigo, diz Buzsáki, que não fez parte da equipa de investigação, mas já supervisionou o trabalho de alguns dos seus elementos.
Janela para o cérebro
Durante o sono, o cérebro revive experiências recentes, com os mesmos neurónios a dispararem na mesma ordem em que foram ativados. Este processo consolida memórias e prepara-as para armazenamento a longo prazo.
Os cientistas observaram que as memórias recentes são processadas quando as pupilas estão contraídas. Já as memórias antigas passam por um processo semelhante, mas durante uma subfase em que as pupilas estão dilatadas.
Esta separação é essencial para evitar o “esquecimento catastrófico”, um fenómeno em que a formação de novas memórias apaga ou distorce as anteriores.
A descoberta pode levar ao desenvolvimento de técnicas que aumentem a capacidade de memória para os humanos ou ajudar os informáticos a treinar redes neuronais artificiais para serem mais eficientes.
O sono e a memória
A ligação entre o sono e a memória já é bem estabelecida, mas os mecanismos exatos que sustentam esta relação permanecem desconhecidos. Estudos anteriores tentaram melhorar a retenção de memórias em humanos e compreender processos celulares em roedores, mas a conciliação destas abordagens tem sido um desafio.
Os cientistas pensavam que o sono dos roedores era mais simples, dividido apenas em sono REM e não-REM. No entanto, o estudo revelou que a estrutura temporal do sono destes animais é mais complexa e semelhante à dos humanos.
No seu laboratório conjunto, Azahara Oliva e Antonio Fernandez-Ruiz usaram a sua experiência combinada em comportamento animal, desenvolvimento de tecnologia e análise computacional para ver exatamente o que se passa nos olhos e nos neurónios de um rato adormecido.
Durante um mês, os animais aprenderam tarefas como navegar num labirinto para obter água ou recompensas. Depois, foram equipados com elétrodos cerebrais e câmaras para registar as alterações nas suas pupilas enquanto dormiam.
Um dia, os ratos aprenderam uma nova tarefa e, quando adormeceram, os elétrodos captaram a sua atividade neuronal e as câmaras registaram as alterações nas suas pupilas.
Os registos mostraram que, quando a pupila encolhe, as memórias recentes são reativadas e consolidadas. Já com as pupilas dilatadas, o processo foca-se nas memórias antigas. Este ciclo alternado permite ao cérebro integrar novas informações sem prejudicar o conhecimento já armazenado.
“É durante o sono não-REM que ocorre a consolidação real da memória. São momentos com duração muito curta, de 100 milissegundos", explica Azahara Oliva .
Assim:
- Numa subfase do sono não-REM, a pupila encolhe e é neste momento que as tarefas recentemente aprendidas – ou seja, as novas memórias – estão a ser reativadas e consolidadas.
- As memórias mais antigas são reproduzidas e integradas quando a pupila está dilatada.
É uma sequência: "uma nova aprendizagem, uma memória antiga, uma nova aprendizagem, uma memória antiga, vai flutuando lentamente durante o sono”, explica Oliva. “Estamos a propor que o cérebro tenha esta escala de tempo intermédia que separa a nova aprendizagem do conhecimento antigo”.
O rastreio das pupilas durante o sono, por ser um procedimento não invasivo, pode abrir portas para estudos em humanos, beneficiando especialmente pessoas com défices de memória associados a problemas de saúde mental.
Benefícios para "cérebros" artificiais
As aplicações desta descoberta não se limitam aos humanos. Na área da inteligência artificial, esta abordagem pode inspirar o desenvolvimento de redes neuronais mais eficientes.
“O cérebro pode recordar muitas coisas com um número relativamente pequeno de neurónios, mas não sabemos como é que isso acontece. Como pode o cérebro alcançar um feito tão grande de memória e capacidades cognitivas com tão poucos recursos em comparação com o ChatGPT, que consome centenas de milhares de vezes mais energia para realizar qualquer tarefa?”, questiona Fernández-Ruiz
Segundo os investigadores, imitar a forma como o cérebro separa memórias em subfases do sono pode revolucionar os sistemas de aprendizagem automática, tornando-os mais eficazes e menos dependentes de enormes recursos energéticos.