
Nos últimos anos, a reorganização administrativa do território tem sido um tema recorrente, especialmente agora, com a recente vaga de desagregação de freguesias aprovada na Assembleia da República e posteriormente vetada pelo Presidente da República. Contudo, este debate tem estado enviesado: foca-se apenas nas freguesias e ignora um dos maiores problemas — o excesso de municípios. A reforma de 2013, sob a “lei Relvas”, foi mal fundamentada, desconsiderou as especificidades territoriais do país e foi implementada sem o devido critério. Ao corrigirmos os erros dessa reforma, é imprescindível que possamos olhar para além das freguesias para repensarmos o modelo administrativo do país, no sentido de oferecermos soluções para uma verdadeira reorganização territorial.
Contrariando o que muitos pensam, as juntas de freguesia não são meros órgãos administrativos. Elas representam o elo mais próximo entre os cidadãos e o Estado, sendo um pilar essencial da democracia de proximidade. Nas chamadas “zonas de baixa densidade populacional”, as juntas de freguesia são muito mais do que burocracia: são o coração da vida comunitária. Garantem o apoio às populações, dinamizam a vida local, asseguram serviços essenciais e preservam a identidade cultural das regiões. Reduzir a presença do Estado nestas zonas é acelerar o seu abandono e apagar séculos de história. Nos centros urbanos, o cenário é diferente: as freguesias muitas vezes duplicam as funções autárquicas, tornando-se apenas extensões das câmaras municipais, sem a mesma relevância social que têm nas zonas “rurais”.
Defender as freguesias não é apenas uma questão administrativa, mas de cidadania. Elas aproximam os cidadãos do poder, conferem rosto ao Estado nos territórios e garantem que ninguém fica para trás. Saber distinguir as freguesias consoante a região do país em que estão localizadas é valorizar a diversidade do nosso território e evitar tratá-lo como uma metrópole uniforme, encaixotada a régua e esquadro.
Sendo do conhecimento geral a existência de um problema estrutural na organização administrativa do país, entendo que ele não está nas freguesias, mas nos municípios. Com 308 concelhos, muitos dos quais sem a escala ou viabilidade financeira necessária, a estrutura municipal permanece praticamente inalterada desde a reforma de Mouzinho da Silveira, no século XIX. A questão que se coloca é: faz sentido manter municípios com menos de 10 mil habitantes, incapazes de prestar serviços de qualidade? A resposta é clara.
A fusão de municípios pode gerar economias de escala e tornar a gestão mais eficiente, sobretudo nos concelhos com menos de 10 mil habitantes, que gastam, segundo o Anuário Financeiro dos Municípios, mais de 50% do seu orçamento em despesas administrativas. Muitos desses municípios dependem fortemente do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) para equilibrar os seus orçamentos — cerca de 35% enfrentam dificuldades financeiras, tornando a fusão não apenas viável, mas necessária. Centralizando os recursos em municípios maiores, seria possível aumentar o investimento em infraestruturas e serviços essenciais, reduzindo-se, ao mesmo tempo, a dependência do Estado central. E, ao contrário do que alguns temem, isso não comprometeria a identidade nem a cultura das regiões. Basta olharmos para os modelos adoptados em países como a Suécia, a Dinamarca ou a Finlândia.
Não obstante, e caso se decida avançar com a fusão ou extinção de freguesias, o critério a seguir deve ser igualmente claro: começar pelas urbanas e pelas freguesias cujas sedes estão na própria cidade, especialmente aquelas que, na prática, já foram absorvidas pelas funções da câmara municipal. Ora vejamos: é nas cidades que as freguesias acabam por ser absorvidas pelos municípios, que já desempenham grande parte das suas funções. Só assim alcançaremos uma gestão mais eficaz e uma melhor alocação de recursos.
Se a justificação para a fusão ou anexação de freguesias for o aumento de cargos públicos ou a economia gerada, é importante percebermos que muitos autarcas, sobretudo em freguesias com menor população, já recebem uma quantia irrisória pelo desempenho das suas funções. O mesmo se aplica aos membros das assembleias de freguesia que desempenham um papel crucial na gestão local. Por outro lado, a função não pode ser encarada de um ponto de vista meramente remuneratório, mas sim como um serviço prestado à comunidade.
A reorganização do território, portanto, não pode ser vista como um mero exercício burocrático. A reforma de 2013, embora necessária, teve falhas que precisam de ser corrigidas, mas o debate deve ser mais amplo. Portugal tem municípios a mais e um modelo de governação local desajustado, que carece de actualização. Contudo, corrigir os erros da última década não é suficiente. A reforma territorial deve ser pensada dentro de um plano mais abrangente de desenvolvimento regional, que vá além da simples reorganização administrativa.
Outro ponto que merece ser revisto na organização autárquica é a figura do “vereador da oposição”. Criado para reconhecer a pluralidade política nos executivos municipais, esse estatuto não tem qualquer efeito prático. Todos os vereadores exercem a mesma função de fiscalização e escrutínio do executivo, independentemente de estarem na oposição ou na maioria. O título de vereador da oposição não confere competências adicionais nem garante mais meios para o desempenho da função, antes pelo contrário. Na prática, trata-se de um rótulo que está longe de servir a população ou a câmara municipal, apenas engrossa administrativamente o poder local.
Se o objectivo for reforçar o papel fiscalizador da oposição, o caminho passa por medidas concretas: maior transparência, melhor acesso à informação e mecanismos mais eficazes de controlo democrático. Para garantir um verdadeiro equilíbrio no poder local, será na assembleia municipal que essa representatividade deve ser valorizada. Sendo um órgão colegial, com uma composição plural, e directamente eleito pelos cidadãos, a assembleia municipal é o espaço próprio para o debate político e para a fiscalização da câmara, assegurando que as diferentes forças políticas tenham voz sem necessidade da criação de títulos artificiais que pouco acrescentam ao funcionamento das autarquias.
A reorganização administrativa do país tem de ser feita com seriedade, olhando para os problemas reais e não apenas para a superfície. A fusão de freguesias não pode ser um pretexto para a redução do Estado onde ele é mais necessário. Antes de extinguir freguesias, há que olhar para os municípios, repensar a sua escala e garantir que todos têm condições para prestar serviços de qualidade. É tempo de deixarmos de lado reformas apressadas para investirmos, com determinação, num modelo territorial que sirva efectivamente os cidadãos, com menos estruturas redundantes, maior eficiência e mais transparência.
Portugal precisa de um Estado que exista onde faz falta, onde é necessário, sempre com proximidade e racionalidade. A política autárquica tem de ser um instrumento de desenvolvimento e não um peso administrativo. Só assim podemos construir um modelo territorial moderno, eficaz e justo, capaz de responder aos desafios do presente e preparar Portugal para o futuro.