
Ao longo dos anos, a direita e a extrema-direita têm criado, com uma grande dose de esforço, um inimigo comum, um bicho-papão que, nas suas palavras, ameaça a ordem social: os perigosos esquerdistas do movimento woke.
Percebo que dê jeito a uma direita cada vez mais radical na economia e nos valores encapotar-se como moderada por não ceder às bizarrias que, de acordo com os conteúdos que pululam na internet, caracterizam o “wokismo”. Mas afinal, o que é ser woke? Qual é o verdadeiro significado do termo que tem sido distorcido de forma tão conveniente?
A palavra woke tem as suas raízes no movimento de luta pelos direitos civis nos EUA. Originalmente, ser woke significava estar "acordado" para os problemas que muitos tentam ignorar, especialmente no que diz respeito à discriminação racial, à desigualdade e à opressão. Todavia, os extremos de cada posição, mesmo que marginais, passaram a ilustrar o seu todo. O movimento woke, que nasceu de um lugar de justiça e da vontade de tornar o mundo mais inclusivo, tem sido, taticamente e conscientemente distorcido, polarizado e utilizado de forma fetichista e divisionista.
A direita e extrema-direita ridicularizou até à exaustão os excessos – porque os há – deste movimento e apresentou ao grande público o “wokismo” como uma ideologia ultra-urbana, alheada dos trabalhadores e da vida comum. Acantonada nas letras da inclusão, nas casas de banho, num mundo sem géneros ou na representação por decreto.
O truque resultou. Não raras vezes ouvimos no nosso espaço mediático a alusão aos dois extremos como se fossem antagónicos, mas, ao mesmo tempo e de igual modo, nocivos ao debate público. Tal não poderia ser mais artificial e até perigoso.
Sem me amarrar a perceções distorcidas nem a interpretações convenientes e sem medo dos julgamentos que tentam colocar sobre quem se posiciona de forma mais progressista, afirmo: sou woke, e então?
Ser woke é acreditar num futuro melhor. Como já sabemos, a palavra nasceu da consciência de que o mundo não trata todas as pessoas de forma igual e que só através da ação coletiva se pode mudar essa realidade. Foi a luta contra a injustiça e a desigualdade que lhe deu significado. Mas a justiça social não é um conceito abstrato. Não há igualdade se o trabalho não for valorizado, se a habitação for um privilégio e se a mobilidade e as oportunidades dependerem do local onde se nasce.
Não há justiça social se quem trabalha não consegue viver bem. Nenhuma economia é verdadeiramente forte quando os salários não permitem mais do que sobreviver.
Não há justiça social sem acesso a um lar. Sem um lugar seguro para viver, nenhuma liberdade é completa. A habitação acessível não pode ser um luxo reservado a alguns.
Não há justiça social quando a mobilidade ainda é um fator de exclusão. Os transportes públicos devem ser eficientes e acessíveis em todo o território. A liberdade de circular e aceder a oportunidades não pode depender do código postal onde se nasce.
Ser woke é recusar a ideia de que a precariedade é inevitável, que a desigualdade é natural e que a injustiça é um preço a pagar pelo progresso. É saber que as lutas de ontem não terminaram, apenas assumiram novas formas. É perceber que a igualdade que tantos antes de nós defenderam só existe se for garantida na vida concreta de cada pessoa, nos direitos que protege, nas oportunidades que oferece.
Tudo isto é ser woke. E se isso é ser woke, então assumo-o: eu sou woke.
No diálogo ideológico não há nenhuma equivalência a estes valores. Basta navegar por breves minutos em qualquer caixa de comentário de qualquer publicação online para perceber a diferente natureza do polo ideológico contrário. Se de um lado se proclamam valores como justiça social, igualdade e solidariedade, do outro ouvem-se gritos de guerra odiosos contra as mulheres, as minorias e o progresso social.
Ser contra o racismo não é extremista como quem é racista. Lutar pela igualdade entre géneros não é equivalente a quem assume a misoginia como ideologia. Clamar por inclusão é significativamente diferente do que defender um modelo social do século XIX.
O mais bizarro é que perdemos esta narrativa. Hoje, quase todos assumem que existe uma (falsa) equivalência entre os “dois extremos”. O que faz com que a esquerda progressista esteja constantemente a justificar absurdos e que se tenha instalado a perceção que desistimos das lutas da maioria. Nada é mais falso. Defender direitos humanos não significa desprezar a luta dos trabalhadores. Pelo contrário, são lutas que se complementam porque assentam num espírito comum de solidariedade.
A responsabilidade, aqui, não é apenas do Chega, do André Ventura ou sequer da direita. É de todos os que, por ação ou omissão, permitem que esta dinâmica se estabeleça. (E aqui para nós, bem sabemos que assim tem sido potenciado por políticos, comentadores e jornalistas.) Ela é porém, a marca de água de um populismo que se alimenta da simplificação extrema dos problemas sociais e de falsas caricaturas, criando bodes expiatórios e distorcendo a verdade.
O limite que, como democratas, sabemos que deve existir nas narrativas políticas é a verdade e o respeito. No entanto, o Chega e figuras como André Ventura mostram que, para eles, esses valores são apenas convenientes quando favorecem a sua agenda. Basta, mais uma vez, olhar para qualquer publicação sua nas redes sociais para ver a diferença na semântica, métodos e valores.
Hoje, a prática descarada da mentira corre impune na sociedade. Não é acidental – reflete uma estratégia que se alimenta do desalento e da crise de confiança nas instituições democráticas. Eles trabalham para deslegitimar as estruturas do Estado de direito e enfraquecer o contrato social que mantém a coesão da sociedade.
Até quando poderemos tolerar isto? Até quando toleramos a mentira e a manipulação como formas legítimas de fazer política? Porque ser woke, afinal, é apenas acreditar num futuro melhor para todas as pessoas. É aqui que reside o perigoso extremo?