Em “A Vida Nova”, romance inquietante de Orhan Pamuk, um jovem lê um misterioso livro que transforma radicalmente a sua perceção do mundo e o arrasta por uma viagem tão reveladora quanto destrutiva. Essa busca por sentido num país em permanente tensão entre tradição e modernidade espelha, com estranha precisão, a travessia política da Turquia contemporânea. Hoje, porém, já não é preciso qualquer livro enigmático para se perceber o que está à vista de todos: a Turquia é, sem subterfúgios, uma autocracia. E dizê-lo de forma clara deixou de ser provocação ideológica — é uma constatação factual.

Por estes dias, o olhar atento sobre a Turquia revela muito mais do que um episódio de repressão interna: mostra uma estratégia meticulosa de consolidação autocrática, encenada por Recep Tayyip Erdoğan com o cuidado de um relojoeiro político. A prisão preventiva de Ekrem İmamoğlu, presidente da Câmara de Istambul e provável candidato presidencial da oposição para 2028, é apenas o mais recente capítulo de uma longa narrativa de desmantelamento progressivo das instituições democráticas.

İmamoğlu não é um político qualquer. Oriundo do secular e social-democrata Partido Republicano do Povo (CHP), com raízes kemalistas e um passado ligado à refundação da Turquia moderna, é hoje um dos rostos mais carismáticos e inclusivos da oposição. Representa um estilo de liderança fresco, contemporâneo, onde cabem todos: seculares, religiosos moderados, liberais, jovens urbanos e mesmo parte da minoria curda. Em contraste gritante com a retórica polarizadora do poder, İmamoğlu cultivou a imagem de um político que fala com todos, sem insultar ninguém. Precisamente por isso, tornou-se uma ameaça real ao regime.

No dia 19 de março de 2025, o regime de Erdoğan decidiu agir. Sob acusações de corrupção e suspeitas de terrorismo — estas últimas entretanto retiradas —, İmamoğlu foi detido e colocado em prisão preventiva por ordem de um tribunal. Não é um ato isolado: dezenas de políticos da oposição, sobretudo ligados ao agora rebatizado partido pró-curdo DEM (antigo HDP), têm sido detidos nas últimas semanas. O argumento é sempre o mesmo: alegadas ligações ao PKK, grupo considerado terrorista pelo Estado turco. Mas o que se observa, mais do que investigações criminais legítimas, é um padrão claro de criminalização da oposição.

Não deixa de ser revelador o momento escolhido: três anos antes das próximas presidenciais, numa altura em que a oposição ainda tenta recompor-se da derrota em 2023 e carece de liderança unificada. Erdoğan ataca preventivamente, aproveitando o foco mediático internacional sobre a Ucrânia e o Médio Oriente, para eliminar uma figura que sabe poder ser, em 2028, um adversário invencível.

Mas a situação é tanto mais complexa quanto paradoxal. O endurecimento autoritário interno ocorre no exato momento em que a Turquia ensaia uma aproximação estratégica à União Europeia e procura reforçar o seu papel na NATO. Ancara, com o segundo maior exército da Aliança, depois dos Estados Unidos, tornou-se um pilar essencial no flanco sudeste da NATO, sobretudo face ao prolongamento da guerra na Ucrânia. No Mar Negro, onde a Rússia tenta expandir influência, a Turquia é hoje a única potência capaz de fazer contrapeso. Se a Ucrânia cair e a Rússia dominar o Mar Negro, esse espaço tornar-se-á, com exceção da Turquia, um lago russo — um cenário que nem Bruxelas nem Washington querem ver concretizado.

Daí que, por mais incómodo que seja o comportamento autoritário de Erdoğan, a Europa e, em particular, a União Europeia devem manter com a Turquia uma relação ambígua, quase cínica. Precisam dela, mas não a podem endossar completamente. Por isso, abre-se a porta, através da Alemanha, a novas formas de associação: um estatuto próximo do modelo norueguês ou suíço, uma possível integração no espaço Schengen, sem que isso implique uma adesão plena à União. Mas nada está decidido. É a lógica da funcionalidade, onde a geopolítica se sobrepõe à ética democrática.

No plano interno, outro desenvolvimento merece atenção: o início de um processo de pacificação com a minoria curda, que, a confirmar-se, representaria uma mudança histórica no conflito que há mais de 40 anos marca a política interna turca. A proposta de cessar-fogo lançada pelo líder curdo Abdullah Öcalan e aceite pelo PKK sinaliza uma janela de oportunidade rara. E Erdoğan, com o instinto político que lhe é conhecido, sabe que um acordo com os curdos traria estabilidade interna e capital político num momento de erosão económica.

Porque sim, a economia é outro dos fantasmas que assombram o regime. A inflação continua acima dos 70%, o desemprego jovem dispara, e a lira turca arrasta-se nos mercados. A pressão social cresce, sobretudo nas grandes cidades, e é isso que torna figuras como İmamoğlu tão perigosas para o poder: representam a esperança de uma alternativa.

Tudo isto coloca a Europa — e o mundo ocidental em geral — perante um dilema clássico. A Turquia é indispensável no xadrez da segurança euro-atlântica. Controla o Bósforo e os Dardanelos, por onde passam navios militares e mercadorias vitais. É o tampão entre o Médio Oriente e o continente europeu, tanto em fluxos migratórios como em estabilidade regional. Mas é, ao mesmo tempo, um país que se afasta progressivamente dos valores democráticos que a Europa diz defender.

Erdoğan sabe disso. E joga com isso. Enquanto os olhos do mundo estão voltados para a frente de batalha na Ucrânia e para o caos no Médio Oriente, ele consolida o poder, amordaça a oposição e molda a Turquia à sua imagem. Com astúcia, paciência e eficácia. A prisão de İmamoğlu é apenas mais uma jogada. Mas uma jogada que diz muito sobre o tabuleiro. A pergunta que sobra é: até onde está o Ocidente disposto a fechar os olhos?