De Manchester vem o anúncio: um novo Estádio. Mas chamar-lhe "Estádio" é um erro de escala. O que se ergue é um monstro de cadeiras e erva, uma muralha ciclópica de vidro e aço, uma afirmação grotesca pensada para impressionar eventuais extra-terrestres ou humilhar os pobres mortais. Uma aberração faraónica.

Faraónica? Digo mal. Os Faraós ergueram pirâmides, templos, obeliscos; esqueletos de pedra para assombrar os séculos dos séculos. E não é isso o que está aqui em causa. Falava com o meu amigo arquitecto. Dizia o Francisco: — “O Foster provavelmente tem um dos maiores ateliers (ou gabinete, se quiseres) do mundo, mas a relevância disciplinar é… desproporcional.” Ou seja, aquela formidável besta de plástico e fibra de carbono nem sequer para a posteridade tem função ou rasgo. É apenas e tão-só um Shangri-la genérico de um clube que esqueceu quem é: os três minaretes que encimam aquela espécie de barracão de acrílico poderiam muito bem servir os Kuala Lumpur Vikings ou os Shangai Rangers. Gasta-se um império numa banalidade.

E é pura mistificação: esta semana, um xeque, para a próxima, um oligarca. E depois, outro e outro, numa guerra de quem constrói a maior vaidade. Para os bilionários, ver quem cospe mais longe é uma modalidade olímpica. Um delírio que pede luto.

Se eu fosse adepto do Manchester, e graças a Deus não sou, fechava-me em casa a velar o morto. Porque uma grande novidade traz sempre consigo uma grande velharia. Com que descaramento se anuncia que uma porção de História se atira para uma pilha de inúteis, como se fosse um monte de sucata? São 115 anos, caro leitor. Até a minha mulher Catarina ficou desconsolada quando soube. Podia ser nosso avô e refiro-me a Old Trafford: recinto que nasceu para ser antigo, património andante, memória de memórias. Com que moral?

Bem. Deus sabe as passas que os adeptos do United têm aguentado. Há 25 anos que travam embates épicos contra a invasão dos selvagens do progresso – e perdem. Em 1998, ainda houve fôlego para chutar Rupert Murdoch para longe de Old Trafford. Mas em 2005, o cerco apertou. Malcolm Glazer, com a ligeireza de um caixeiro viajante e o olhar translúcido de quem não distingue um fora de um fora-de-jogo, tomou o clube. E com ele veio a barbárie: horários de jogo martelados para a televisão, padrões de modernidade e conforto, nos quais os novos “adeptos” se sentam com a higiene e placidez de quem aguarda senha, à espera que o futebol lhes seja servido numa bandeja. A segurança sufoca, os bilhetes custam o preço de um pecado, e o jogo, antes um campo de batalha, passou a entretenimento imersivo para milionários aborrecidos. Sem suor, sem febre, sem nada.

Ora, com a mãe de todos os desportos com bola não se brinca. Criou o futebol e especializou-se no seu contrário. Mas se há coisa que Inglaterra sempre soube, foi resistir. Em Waterloo, soube resistir. Em Dunkerke, soube resistir. Quando a RAF ficou sozinha contra a Luftwaffe de Hitler, resistiu. Resistiram os mineiros e resistiram camponeses. Em Brixton e em Tottenham, resistiu-se. E os adeptos também, como sempre, estiveram à altura.

Hoje, os verdadeiros diabos vermelhos juntam-se aos Domingos à tarde em Broadhurst Park. É aí que desde 2005 – quando chegaram os Glazers - um “grupo de indivíduos” (como não amar a maneira como se auto-descrevem?) continuou o Manchester United sob a forma do Football Club United of Manchester. Haverá paradoxo mais Chestertoniano que este: um clube novo que é o velho clube?

Os bilionários, esses faraós da desinspiração, constroem estádios como quem cava túmulos. Mas o futebol é como uma barata: podem pisá-lo, podem esmagá-lo; podem até usar o lança-chamas. Mas quando menos se espera, havendo chá e torradas com marmelade, lá está ele outra vez, a correr numa tarde de Domingo em Broadhurst Park.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.