Um dia, a meio de uma aula de dinamarquês no ensino secundário, o jovem Emil Nielsen recebeu uma chamada do treinador da equipa principal do Aarhus. Nielsen, então com 17 anos, estava no primeiro ano da equipa de sub-18 do clube de andebol da sua cidade, mas o infortúnio de um dos guarda-redes da primeira equipa tornou-se matéria de história para o andebol da Dinamarca.

Dias depois, Emil Nielsen tornou-se no mais jovem jogador da história do Aarhus a estrear-se na equipa principal. Meses depois, era o guarda-redes mais utilizado do clube, demonstrando já muitas das qualidades que fazem dele, hoje, um dos melhores do mundo: a capacidade de ler o jogo, o tempo de reação, mesmo quando lhe criticam o físico, os 120 quilos distribuídos por 195 centímetros de corpo, que podem intrigar quem com ele se depara pela primeira vez. Sim, aquele gigante na baliza dinamarquesa é mesmo atleta de alta competição. E talvez o mais talentoso na sua posição.

Emil Nielsen será a última barreira a separar Portugal do sonho de estar na final do Mundial de andebol. Esta sexta-feira (19h30, RTP1) estará na baliza da Dinamarca, que tenta um inédito quarto título mundial consecutivo. Nos quartos de final, frente ao Brasil, o guarda-redes do Barcelona defendeu 15 dos 33 remates que recebeu, um acerto de 45%. Nielsen é o guardião do Mundial com maior percentagem de defesas: num total de 220 tiros, defendeu 97, o que prefaz 44% de remates defendidos. Em termos de comparação, a média de defesas deste Mundial está nos 30%.

Aos 27 anos, Nielsen é uma estrela no seu país, um sucessor mais do que à altura do mítico Nicklas Landin, que admirava em miúdo e que deixou a seleção após a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris, no verão. Mas até se tornar num dos mais preponderantes jogadores do mundo, guardando o espaço entre as três traves de madeira com a aparente displicência de quem é tão bom que nem tem de se esforçar, a vida não foi uma passadeira vermelha para o guarda-redes nórdico: houve problemas de saúde que o deixaram perto da morte e o levaram, nas suas palavras, “de volta à idade média”; houve problemas com treinadores, acusações de falta de profissionalismo. E, por fim, um trágico desaparecimento em plena competição.

A doença que travou a evolução

Ainda antes dos 20 anos, Emil Nielsen já era considerado um talento geracional, a próxima-grande-coisa do andebol mundial. Mas no final da época de 2016, tudo poderia ter acabado. Nielsen estava numa festa de aniversário quando começou a ficar “super irritado com uma lâmpada”, como explicou em 2017 ao jornal dinamarquês “B.T.”. “Estava tudo muito, muito brilhante e aquilo deixou-me muito nervoso. Tive de me deitar”, continuou.

O que parecia um capricho tonto tornou-se, com o passar das horas, em algo bem mais preocupante. Seguiu-se uma terrível dor de cabeça e vómitos persistentes: “Vomitei enquanto dormia e caminhava contra as paredes, foi uma loucura”. No hospital, Nielsen foi colocado em isolamento depois de ser diagnosticado com meningite. Durante seis meses foi obrigado a fechar-se num quarto e afastar-se de qualquer forma de luz, para não agravar o seu estado de saúde e tratar uma doença que, nos casos mais graves, pode causar sequelas como paralisia ou surdez, além de outros problemas neurológicos. Daí o voltar “à idade da pedra”, como confessou em 2023 no podcast “The Spin”, da EHF. Uma carreira que prometia o topo era, subitamente, travada.

Mesmo em convalescência, Emil Nielsen foi contratado pelo Skjern, uma das boas equipas do campeonato dinamarquês, que confiou na sua recuperação. Mas o seu estado físico sofreu, muito. A coordenação perdeu-se e a recuperação foi lenta. “Comecei por caminhar no exterior. Depois ia ao ginásio um minuto, no dia a seguir dois minutos. Mas tinha de voltar para a cama. Foi muito duro física e mentalmente, mas, claro, depois coloca outras coisas em perspectiva”, disse também no “The Spin”.

Em setembro de 2017, Nielsen dizia ao “B.T.” que era primeira vez desde abril do ano anterior que podia dizer que estava “completamente recuperado da doença”, depois de alguns meses em que, mesmo já capaz de treinar, ainda tinha problemas de memória e coordenação. “Tornei-me mais forte. Saí disto mais maduro e - isto pode parecer um cliché - mas agora até aprecio mais o treino. Até dou mais valor a estes exercícios de bicicleta de porcaria”, desabafou na entrevista ao diário, com a honestidade e desconcerto que o caracteriza.

As portas fechadas na seleção

Mas o caminho até conseguir impor-se no andebol mundial teria ainda novos soluços. Em 2019, e apesar de já ser uma estrela no Skjern, Nielsen foi deixado de parte da seleção da Dinamarca pelo selecionador Nikolaj Jacobsen, que apontou o dedo ao talento por este “não levar a sua carreira a sério”, criticando-lhe a falta de profissionalismo. Tudo terá azedado quando Nielsen não cumpriu um programa de treino específico acertado com a federação.

“O Emil é bom, mas falta-lhe estabilidade. Ainda não me mostrou que pode aguentar 60 minutos de jogo de uma forma estável. Até começar a levar a sua carreira a sério, a federação não o pode apoiar. E nós queremo-lo, queremo-lo muito. Mas, primeiro, tem de ser o Emil a querer”, sublinhou ainda Jacobsen, ainda hoje selecionador dinamarquês, citado pelo canal “TV2”. O jogador aceitou os reparos e prometeu trabalhar mais.

Na altura, falou-se da dificuldade de Nielsen em perder peso. Um ano depois, quando voltou à equipa nacional, confessou ao jornal “Ekstrabladet” que o peso era uma luta diária desde os seus 12 anos. “Tenho um metabolismo muito mau, vamos lá ser honestos e dizê-lo”, sublinhou, numa entrevista em que se assumiu também como “o homem mais distraído da Dinamarca”, uma aparente contradição face aos seus números entre o perímetro da baliza. Nielsen lembrou ainda que, apesar das críticas, conseguia fazer coisas “que os outros não conseguem”. E cada defesa neste Mundial, cada saída explosiva da baliza, cada encarar de adversário, a exímia leitura de jogo e das ações do rival estão aí para provar isso mesmo.

Tragédia e ouro em Paris

Com 22 anos, Emil Nielsen foi contratado pelo Nantes para atuar no poderoso campeonato francês e em 2021 jogou o seu primeiro Mundial pela Dinamarca, saindo com o ouro. O Barcelona contratou-o em 2022, mas na seleção só começou a brilhar verdadeiramente no Europeu do ano passado, em que foi o guarda-redes com a mais alta percentagem de defesas (39,8%), feito que dificilmente não conseguirá também neste Mundial.

Nos Jogos Olímpicos de Paris, voltou a ser o dono da baliza dinamarquesa e ajudou a sua seleção a bater a anfitriã França no primeiro jogo do torneio olímpico. No dia seguinte, terríveis notícias chegaram à Aldeia Olímpica, sussurradas ao telefone pela voz da mãe, a muitas centenas de distância: o pai do andebolista tinha morrido subitamente. Apesar das dúvidas, Nielsen optou por continuar em Paris. O público não chegou a saber o que se passava com o guarda-redes que, no meio do pior momento pessoal, ajudou a Dinamarca a conquistar a medalha de ouro olímpica.

“Senti que, no meio do meu maior sonho, andava ali com um segredo trágico que apenas algumas pessoas sabiam. Tentei escondê-lo, mas muitas vezes chorei em campo. A final olímpica foi a maior conquista da minha vida e, ao mesmo tempo, o fim de um fardo mental tremendo”, revelou ao jornal “Jyllands-Posten”.

Este muro aparentemente demasiado grande para estar numa baliza, mas que a tapa com uma presença que intimida, apesar daquela cara de miúdo, estará lá, na Noruega, a tentar impedir o sonho da seleção nacional de estar numa final do Mundial. Ele sabe o que é sofrer até lá chegar.