
Foram as ruas de Faro as primeiras a tomarem contacto com um talento raro. A mais antiga memória futebolística de Lucy Bronze é mesmo correr com uma bola nos pés na capital algarvia com o irmão mais velho, Jorge. A internacional inglesa, melhor jogadora do mundo para a FIFA em 2020 e campeã europeia em 2022, é filha de pai português e a liberdade das peladinhas jogadas com a cara contra o vento quente do sul do nosso país contrastava com uma timidez carregada que cedo deixou a família da lateral de 33 anos em alerta.
As desconfianças da mãe de que Lucy poderia ser autista confirmaram-se apenas há quatro anos, em pleno auge da carreira da futebolista, então no Manchester City. Além de autismo, a luso-britânica foi também diagnosticada com Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, nada de surpreendente para quem “sempre soube” que havia algo de diferente no complexo funcionamento do seu cérebro, confessou à BBC, na primeira vez que Bronze se abriu sobre o seu diagnóstico, em plena Semana da Celebração da Neurodiversidade.
Uma boa obsessão
Na escola, Lucy Bronze foi diagnosticada com dislexia e desde cedo dormir à noite se tornou numa luta muito particular com a almofada. O seu cérebro, diz, estava sempre “a mil à hora”, mesmo deitada. Outros dos sinais que se manifestaram ainda em criança foram a dificuldade em olhar nos olhos do interlocutor durante uma conversa ou o desconforto na hora de receber ou dar abraços, algo que foi aprendendo a ultrapassar, também com a ajuda do futebol.
“Quando cheguei à seleção pela primeira vez não conseguia falar com ninguém”, revela. Os mecanismos de integração passavam por mimetizar colegas como a veterana Jill Scott. Bronze “observava-a, via como ela falava com as pessoas e copiava-a”.
O diagnóstico de autismo, já em idade adulta, ajudou Bronze a “aprender” mais sobre si própria. “E a entender porque é que em certas situações eu via as coisas de maneira diferente das outras pessoas e agia também de maneira diferente”, sublinha. A sua obsessão com todos os aspetos do futebol, como o treino, com a condição física, estão intimamente ligados à sua condição e a jogadora, atualmente no Chelsea, diz mesmo que atribui parte da sua longevidade e sucesso no futebol ao autismo.
“É o meu autismo, é o meu hiper-foco no futebol. Uma coisa que é muito boa para a hiperatividade e défice de atenção e para o autismo é o exercício. Ter esse foco, ter algo para fazer”, frisa. Essa necessidade de estar permanentemente ocupado com algo, de alimentar um cérebro em constante carburação, faz com que os mais próximos de Bronze temam pela reação a uma futura retirada do futebol. “Encontrarei outra coisa para fazer”, assegura a jogadora, 129 internacional pela seleção principal de Inglaterra.
Acabar com o estigma
Um estudo da Associação Britânica de Futebolistas Profissionais com 700 jogadores concluiu que 5% foram diagnosticados com uma condição neurodivergente, como autismo, dislexia, dispraxia ou hiperatividade, e que 25% terão já manifestado alguma característica coincidente com estas doenças. A maioria dos jogadores diagnosticados ou com traços de condição neurodivergente não comunicou esse facto ao clube.
Também para “acabar com o estigma”, Lucy Bronze tornou-se embaixadora da Sociedade Nacional de Autismo do seu país.
A futebolista será a desportista de maior perfil a falar do seu diagnóstico de autismo, mas não a única. No final do último ano, o norte-americano Jenson Brooksby, antigo top 40 e outrora esperança do ténis, muito fustigado por lesões nas últimas temporadas, revelou que foi uma criança não-verbal até aos quatro anos, depois de ser diagnosticado “muito cedo” com autismo severo.
“Fazia terapia às vezes 40 horas por semana. A minha mãe nunca desistiu e fez tudo para me ajudar. Não estaria onde estou hoje sem ela e tenho muita sorte por ter pais que se recusaram a baixar os braços”, escreveu no Instagram.
Numa entrevista à Associated Press, em dezembro, Brooksby assumiu que a sua condição é “um tópico muito pessoal”, mas que finalmente sentiu que não é algo que queira guardar para si próprio. E mesmo que o autismo o leve a, por vezes, ter momentos de maior fúria em campo quando algo não corre bem, o tenista acredita, tal como Lucy Bronze, que lhe traz algumas vantagens, ajudando-o, em “momentos de pressão”, a focar-se em “dois ou três detalhes específicos durante muito tempo”.
O caso de Brooksby, muito severo quando era criança, evoluiu agora para um tipo mais leve. Ainda assim, os seus treinadores estão constantemente atentos a momentos de maior nervosismo do atleta, tal como a traços comummente ligados ao autismo como mexer constantemente nas roupas ou no cabelo.
Se no início abrir-se sobre o tema foi assustador, Brooksby está agora seguro que quer que as pessoas o conheçam “na totalidade” e não apenas “uma parte de si”. O medo do que os outros possam pensar já foi ultrapassado.
“Espero mesmo que, no futuro, outros jogadores, sejam vocais ou não sobre o tema, possam pelo menos saber que é OK ter dificuldades e, espero, possam ser capazes de explicar as suas dificuldades”, rematou numa recente conversa com a BBC.