Há jogos em que as vontades são discerníveis desde muito cedo. Possuído por uma urgência, o Benfica pareceu contaminado pelas tréguas dadas pelo céu despido de nuvens, que deixava o sol atravessá-lo neste domingo cinzentão. Assim que começou o jogo, foram quase 13 minutos de bullying encarnado, a roçar os maus-tratos em Vila do Conde: com inclinação forte à esquerda, onde Carreras era um lateral a sério, à largura, deixando zonas interiores para Bruma, a equipa muito atacava por fora depois de atrair o Rio Ave com pequenos passes por dentro, procurando cruzar e cruzar à procura de Pavlidis.

Perigo descarado, arrepios a sério na espinha vila-condense, talvez só um desvio de raspão no calcanhar de António Silva na bola cabeceada por Otamendi. Aí o modus operandi era também era nítido. Nos muitos cantos de que dispôs o Benfica no primeiro quarto de hora, a intenção do cruzamento foi afastar a bola do alcance do guarda-redes, Cezary Miszta, com mira na cabeça do defesa central argentino para dele ser o primeiro toque na bola que buscasse o desvio definitivo em outrem. Todos os cantos usavam este molde, o Benfica industrializava esta produção.

A sua fabricação ofensiva era vasta e optou mais pela fluidez. Deslocado do seu papel recente, com bola, em ser um central pela esquerda na linha de três lá atrás, a construir, Carreras era quase um extremo, a multiplicar-se em cruzamentos, deixando a função de pegar na gerência das jogadas para Kökçü. Recuando o turco, ficando Florentino e Aursnes uns metros adiante, o Benfica tinha os seus soldados rasos da pressão prontos a cercarem os jogadores adversários quando se perdia qualquer bola. A primeira parte, sobretudo até ao golo, jogou-se por estes carris: os encarnados não paravam de atacar, o Rio Ave só defendia e existia no seu meio-campo.

Já depois de Aursnes, Pavlidis e Bruma terem remates que testaram a boia de salvação que é Cesary Miszta na baliza, um fogacho de espetacularidade irrompeu da chuteira direita de Kökçü. Quase à entrada da área, recebeu a sobra de um corte de cabeça, amansou a bola e demorou o seu tempo possível, o que a circunstância lhe permitia - e igualmente foi fácil despistar o ensejo. O turco ajeitou o corpo, assumiu a postura de disparador de um foguete, abriu o pé para a parte de dentro bater na bola e as manigâncias da relva ajudaram: o pequeno salto que deu antes do contacto, além do gesto técnico, fez o remate subir tão rápido quanto desceu. A trajetória fugiu por inteiro ao alcance de Miszta.

JOSE COELHO

O golo (30’) apenas abrandou ao de leve o Benfica, decidido a prolongar as posses mais um pouco, sacudida a pressa de antes. Não amainou a forte pressão pós-perda de bola que servia de fundação para tudo o resto, a que apertava um colete de forças ao Rio Ave de Petit, ávido de gritos e indicações, contudo incapaz de consertar uma equipa encolhido por completo, espremida contra ela próprio pelo adversário. O influente Demir Tiknaz, médio cuja calma regula o jogo vilacondense, nem ar tinha para respirar. O canhoto Aguilera mal se via. E de saídas rápidas, apenas a que Kiko Bondoso lançou em Clayton, mas o avançado correu quase metade do campo para a contenção dos defesas do Benfica lhe estreitarem as possibilidades para um remate de qualquer maneira perto da área.

A ida ao balneário devolveu um Rio Ave distinto à primeira vista. Reatou o jogo com uma longa posse de bola, vivente para lá do minuto e meio, entrada na metade de relva do Benfica a envolver os seus médios. Prenúncio de mudança, parecia. Não o seria. O jogo de pronto regressou ao seu antigamente, dador de montes de espaço e tempo para Orkun Kökçü, um jogador não particularmente rápido, nem propriamente ágil, mas possuidor de fina técnica a bater na bola, organizar as jogadas encarnadas.

Já não havia Tomás Araújo, ao que parece afetado por uma teimosa lesão, chata ao ponto de o levar a não ser convocado para a seleção, não tanto para lhe tirar 45 minutos em Vila do Conde. Aursnes foi fazer as suas vezes na lateral direita, entrou Leandro Barreiro para as costas de Pavlidis, onde dá a pressão intensa na caça de recuperações de bola. Manteve o Benfica o seu fio, enrolando o seu novelo, cercando a área do Rio Ave ao ponto de até o avançado grego julgar plausível espremer-se entre três adversários na área, tentando surripiar-se por onde o espaço era inexistente. O entrelaçar de pernas era inevitável, a consequência foi um penálti cometido por Vrousai.

O tiro à rede no teto da baliza (53’), mais um pontapé a 11 metros batido a suar confiança por Pavlidis, vestiu-se de mais outra prova do estado superior do helénico, no outono esmiuçado na crítica por jogar bem e não marcar, agora louvado por jogar, na prática, o mesmo, mas com o acrescento dos golos - este foi o sexto na ultima meia dúzia de jornadas, o vigésimo da temporada. O Benfica refestelava-se no jogo, confortável em como o tinha.

Mas mais ou menos pela hora de jogo, na fronteira não escrita em que treinadores se lembram das substituições, riscos se tomam e precauções surgem, algo aconteceu. De início, não foi bem discernível, culpa do infortúnio misturado com a imprudência: quando a urgência em fazer algo despertou o Rio Ave para puxar Clayton, a sua locomotiva de avançado, uns metros para trás de modo a receber bolas e arrancar, Florentino parou-o em falta quando se aproximava da área. O livre subsequente, dado a Aguilera, fez a bola desviar no corpo receoso que Pavlidis virou, na barreira, dando o ricochete que enganou (64’) Trubin. Nesse pequeno episódio de caos, o Benfica ruiu em algumas peças enquanto o Rio Ave achou um embalo.

Os vilacondenses tinham em Aguilera um farol para facilitar as saídas de bola, a entrada de João Graça ajudou e, por oposição, Bruno Lage abdicou de Kökçü para ter Renato Sanches, não o médio mais afincado nos momentos do jogo em que o objetivo que rege o futebol está longe da sua equipa. Decidido a pressionar mais à frente, farejando tiques de instabilidade, o Rio Ave avançou no campo. A atitude coincidiu com o Benfica querer continuar a sair curto de trás e uma desatenção de Florentino: ao receber um passe de Trubin, rodou com a bola para o lado de onde vinha o aperto de Clayton. O avançado mascarou-se de ladrão, sentou o guarda-redes e empatou (81’) a partida. Quem estava de visita parecia ter desligado um fusível.

JOSE COELHO

Antes deslizara, por vezes até voara rente ao relvado, dona das operações, mas a equipa de um Bruno Lage adoentado, pródigo em gritos de irritação dirigidos a Florentino na ressaca do seu disparate, teve então que perseguir o prejuízo. A solução esteve nos substitutos. Numa jogada de passes curtos, o toque desbloqueador foi a receção orientada de Andrea Belotti, com a qual o italiano se livrou da marcação, correu até fixar um defesa, soltou à direita para Aursnes e o norueguês cruzou a bola para, na área, o mágico que deixou a sua varinha murchar resgatar a partida para o Benfica.

Os pézinhos de lã para receber, fintar Miszta e marcar (81’) o golo salvador veio de Aktürkoglu, o por estes dias sorumbático turco das meias em baixo e gestos de feitiçaria quando muitos golos fez para habituar quem o viu na aterragem em Lisboa a uma fasquia que dificilmente aguentaria. O hoje intermitente atacante, homem para finalizar e não tanto para lhe pedirem que desate nós no jogo, fez o 2-3, minutos depois o poste negou-lhe o 2-4, mas virou-se para os adeptos e disse que estava aqui, ou lá, onde seja quando um futebolista reclama o seu lugar. Foi o 12.º golo de Aktürkoglu esta época, nove desses marcou-os durante o primeiro mês e meio de Benfica.

Na figura do turco ficou representada simbolicamente esta exibição dos encarnados: um começou fulgurante, uma hora contínua de domínio no jogo, volumada por ataques constantes, para depois minguar num quase abismo. Feita uma hora a ser implacável, o Benfica teve 20 minutos pobres, a tentar apanhar a brisa soprada pelo Rio Ave com as mãos. Salvou-se quando inventou um pára-vento de emergência, mantendo-se colado ao trunfo de ainda ter um jogo em falta que, ganhando, o colará à liderança do Sporting. Mas só a vencer com constância até lá o conseguirá. E para isso convém ser constante num jogo.