

Respirou, encheu o peito de ar e libertou as lágrimas, confundidas algures entre a revolta de tanto tempo em desvantagem e a alegria de um golo nos descontos. Eduardo Quaresma libertou toda a ansiedade de Alvalade com um momento de génio e de alta precisão técnica que evitou um desaire surpreendente e com contornos atordoantes do Sporting diante do Gil Vicente, mas não apagou as inseguranças dos leões.
Em maio qualquer exibição pode ser desvalorizada se os três pontos, essa miragem distante e ao mesmo tempo tão próxima, forem conquistados, mas não convém apagar da história o que se passou nos 90 minutos. Especialmente quando esta ainda não foi escrita. E, neste capítulo, há que enaltecer aquilo que fez o Gil Vicente, especialmente do ponto de vista defensivo, e que conseguiu colocar Alvalade a bradar aos céus, apelando à ajuda divina quando nem mesmo aquele mais próximo do sobrehumano – Viktor Gyokeres, pois claro – não estava a ser capaz de ajudar.
O Gil Vicente foi ousado, mesmo que os números digam o contrário. Há muito de louco naquilo que César Peixoto trouxe para Alvalade, com um desenho da pressão que, durante cerca de uma hora, antes do jogo se descaracterizar, conseguiu anular as investidas do Sporting.

Era em 4-4-2 que, quem circulasse pelo espaço aéreo de Alvalade, poderia traçar alguma espécie de organização defensiva no jogo dos galos que fizeram da variabilidade a sua matriz. Com bola, o Gil Vicente variou o jogo entre saídas mais curtas e bolas diretas, procurando Pablo Felipe no duelo com St. Juste. Sem esta, o bloco estava sempre compacto, mas ia subindo ou descendo metros numa cadência definida pelo rolar do esférico.
Os extremos (João Marques e Félix Correia), ao contrário do que seria expectável, não acompanhavam os alas, mas tinham um posicionamento mais avançado, na tentativa de impedir conforto aos centrais exteriores do Sporting (Gonçalo Inácio à esquerda, Eduardo Quaresma à direita) e de cortar a linha de passe para os alas. Com os laterais envolvidos no duelo direto com os alas leoninos, eram os médios quem procurava controlar as ações de Pedro Gonçalves e Francisco Trincão, tendencialmente entrelinhas, mas também a procurar desmarcações e diagonais, forçando o Gil Vicente a juntar muitas vezes cinco elementos na sua linha defensiva.
Com os dois nomes mais avançados a procurar limitar a capacidade distributiva dos médios leoninos, sobravam os dois defesas para a função mais difícil do jogo: travar Viktor Gyokeres. Marvin Elimbi e Jonathan Buatu foram muito exigidos, mas fizeram uma exibição contundente contra o sueco, principalmente o central angolano. Conseguiu evitar ao máximo que Viktor Gyokeres se encostasse no seu corpo para ganhar impulso para rodar, conseguiu manter o sueco de costas para a baliza e controlou as arrancadas do homem a quem as mãos só serviram para procurar soluções ineficientes e não para, como de costume, cobrir a cara na mais graciosa máscara que Portugal viu nos últimos anos.

Este desenho ousado controlou o Sporting e permitiu ao Gil Vicente, por poucas vezes, chegar ao último terço. Com Mutombo pela esquerda a projetar, Félix Correia pela direita a procurar acelerar e Mohamed Bamba – um projeto de jogador para palcos bem maiores – a gerir tudo desde trás, os galos procuraram saídas e, numa delas, viram St. Juste cometer uma infantilidade.
Há, na infantilidade, um contrassenso que Alvalade viu de perto. Há aqueles casos em que, por incapacidade de gerir as ações, se derrubam jogadores em situações nada alarmantes e se cometem erros técnicos com potencial de mudar a história. Como central do meio, o neerlandês foi incapaz de oferecer segurança ao jogo do Sporting e pôs a pata na poça num lance crucial para aumentar o conforto do Gil Vicente no jogo e acentuar a estratégia dos galos.
Mas, há também os casos de Eduardo Quaresma, um dos mais promissores talentos de Alcochete que, fruto desta infantilidade, se demorou a impor em Alvalade. Andou perdido em Viseu e na longínqua Alemanha antes de ser resgatado e de se afirmar como jogador para jogos grandes. Continua a ter desconcentrações ocasionais, mas aprendeu a ver o jogo de forma mais madura, com menos desligamentos, e com isso agarrou o lugar. Tem características técnicas, no passe e, principalmente, em condução, para ser influente ofensivamente e, sem bola, tem velocidade nas pernas para jogar longe da baliza e recuperar metros em corrida.
O melhor no jovem português – que, por mais que já ande há tanto tempo nesta roda, ainda só tem 23 anos – é que continua a ter a aura de infantilidade que lhe dá um certo ligeirismo nas ações. As lágrimas que lhe escorriam pela face após levantar todos os sportinguistas das cadeiras são as de um miúdo a cumprir um sonho e o gesto técnico do remate do meio da rua, sem grande preparação, é o reflexo da espontaneidade jovem. Há casos e casos e, para um jogador que teve de pintar fora das linhas antes de aprender a desenhar, o golo contra o Gil Vicente foi uma das pinturas que tão cedo não se esquecem.

Quanto ao jogo, a métrica ideal para definir o trabalho feito – muito mais que os resultados em tantos casos – mostrou um Gil Vicente superior. Na análise não entra a posse de bola, o número de remates ou de ações na área adversária. Nada disso importa para estas contas. Entra apenas a estratégia de César Peixoto e de Rui Borges para o jogo. A primeira funcionou na perfeição até entrar em campo o universo da surpresa, dos ressaltos e do beijo da bola à rede. A segunda passou ao lado e nem as substituições a mudaram.
A uma semana – menos que isso, até – do Dérbi mais decisivo da história dos campeonatos (pelo menos daqueles vividos com todas as cores), a vitória do Sporting ao Gil Vicente escreveu-se pela letra E que dá entrada a palavras como entusiástica, emocionante ou estrondosa. Mas, e numa época em que nenhum dos candidatos teve regularidade exibicional no topo, não convém esquecer a exibição menos conseguida do Sporting. Até porque, do épico ao efémero, estão apenas 90 minutos de distância.
BnR na Conferência de Imprensa
Bola na Rede: O Gil Vicente conseguiu limitar a construção do Sporting através do desenho da pressão. Neste ponto em específico pergunto-lhe pelo papel que pretendia dos extremos, sobre o central, e dos médios, muitas vezes a recuar para a linha defensiva e da sua importância para condicionar os leões.
César Peixoto: Era o que nos pretendíamos. Acionar os extremos para controlar e ter os médios a bascular rápido e acompanhar os movimentos de diagonais do Pote e do Trincão. Tínhamos sempre os dois centrais para as diagonais do Viktor Gyokeres e a equipa cumpriu o plano na perfeição. Volto a ser repetitivo, mas não permitimos nada. É verdade, aconteceu isso. Os nossos homens da frente, o 10 e o 9 a fechar os médios do Sporting, que têm muita mobilidade, muito bem. O Sporting quer chegar entrelinhas, por dentro, para acelerar por fora, mas nunca permitimos isso ao Sporting. Acabou por variar o jogo de um lado para o outro, mas a falhar alguns passes e a perder confiança. É mérito nosso também. Trabalho coletivo fantástico e os meus jogadores estão de parabéns, pena não levarmos mais nada daqui.
Infelizmente não nos foi concedida a possibilidade de colocar uma questão a Rui Borges, treinador do Sporting.