A seleção dos EUA que congrega as suas melhores mulheres com jeito para o futebol tem um código de conduta, no qual, às tantas, surge um subtítulo, em tradução livre, sobre como deve cada futebolista convocada para lá ir jogar “Pautar o Seu Comportamento”. Sem meias-medidas, usando linguagem mais direta, sumariza as regras a cumprir em forma de perguntas que remetem para o bom-senso para os casos em que uma norte-americana da seleção esteja na dúvida se deve, ou não, fazer alguma coisa: “É consistente com este Código? É ético? É legal? Vai refletir-se bem em mim e na seleção?”. Caso a resposta a alguma destas questões for ‘não’, então o documento conclui, sem subtilezas, com uma sugestão, escrita assim mesmo:

“NÃO O FAÇAS.”

Uma leitura do manual pode ter escapado à atenção de Korbin Albert quando, em fevereiro, recebeu pela primeira vez o telefonema, o SMS, o que tenha sido, a convocá-la para a seleção norte-americana. Aos 20 anos, a jogadora do Paris Saint-Germain recebia a boa-nova da chamada à equipa nacional mais titulada, e popular, do futebol feminino. Albert já saberia de cor que ia visitar o púlpito de uma das agremiações mais bem-sucedidas da história do desporto, dona de quatro Mundiais (dois deles seguidos, em 2015 e 2019) e do périplo mais longevo na liderança de um ranking da FIFA, que manteve durante seis anos (entre 2008 e 2014).

Estreou-se logo nesse mês, com estilo, sendo titular em todos os jogos da edição inaugural da Gold Cup, o troféu criado para definir as campeãs da América do Norte que convidou quatro países do continente-irmão, a sul. Na final, jogou os 90 minutos da vitória contra o Brasil, uma experiência ampla em sorrisos para a centrocampista que trocou o estado de Cleveland, no seu país, há dois anos pela aventura que mantém no futebol europeu. Era mais um fruto caído da imensidão de árvores de onde os EUA colhem talento em barda para o futebol jogado por mulheres.

Mas, um par de meses depois, virou público que agiu como se não tivesse consultado o código de conduta da seleção onde, bem além do que está escrito, se vive bastante consoante o poder das ações.

Korbin Albert tem 20 anos e joga há duas épocas no PSG.
Korbin Albert tem 20 anos e joga há duas épocas no PSG. Alex Livesey

Com Korbin Albert já com várias internacionalizações no bolso, vários jornais e canais de televisão norte-americanos noticiaram, sem precisar a data exata, que a futebolista tinha partilhado, no TikTok, um vídeo de um sermão cristão que descrevia os gays e o “sentir-se transgénero” como “errado”. De imediato, o histórico das redes sociais da jogadora foi vasculhado. Entre esse passado, descobriu-se, escreveu o “The Athletic”, que em 2023 e noutro vídeo gravado com membros da família por ocasião do 4th of July, o maior feriado dos EUA, a jogadora era uma das pessoas que dizia: “Os nossos pronomes são USA.” O chorrilho de críticas não tardou a visá-la.

Mais ainda ao ser divulgado, também, que Albert deixara o seu ‘gosto’ numa publicação na qual se lia: “Deus está a tirar folgas de fazer milagres para garantir que a Megan Rapinoe torce um tornozelo no último jogo da sua carreira.” Se foi antes ou depois do factual desse derradeiro encontro, em que Rapinoe rasgou um tendão de Aquiles, não é certo. Mas, deixando lá o seu ‘like’, Korbin Albert alfinetou uma das jogadoras de futebol mais influentes de sempre, cuja pegada deixada nos campos se confunde, quiçá até fica a dever, ao contributo erguido, ao longo dos anos, pela eleita melhor futebolista do mundo, em 2019, quando não estava de chuteiras calçadas.

A acrescentar às partilhas e conteúdos que publicou no TikTok que não podiam contrastar mais com as posturas públicas da seleção que todos os anos, em junho, durante ‘Pride Month’ celebrado nos EUA pelos direitos LGBTQI, joga com os números pintados com as cores do arco-íris, e, por exemplo, em 2023, teve as suas futebolistas a escreveram todas a mesma mensagem em fitas enroladas em torno dos seus pulsos - “Protejam os Miúdos Trans” - quando, no Texas, realizaram o último jogo da SheBelieves Cup, troféu que o país anualmente acolhe no país com outras seleções. Fizeram-no por ser no estado (à semelhança de outros 16) onde o respetivo governador, Greg Abbott, aprovou legislação que proíbe crianças de terem acesso a tratamentos clínicos para mudanças de sexo.

Rebobinando a fita, ao partilhar conteúdos com os quais, deduz-se, concordava, Korbin Albert não foi só contra Megan Rapinoe, a bicampeã mundial e especialista a marcar golos de canto direto, ativista-maior do futebol que cristalizou a carreira a bater o pé, com afinco, erguendo a voz e as ações pelos direitos das minorias, sobretudo assim que se curvou, literalmente e de joelho no chão, pelos protestos contra a violência racial e policial nos EUA enquanto tocava o hino do país nos jogos da seleção - foi, também, bater contra um legado de valores e de uma perceção pública nutrida há muito pela seleção norte-americana.

O que teve consequências, mais na dimensão vocal do que na prática.

A jogadora a falar com a selecionadora dos EUA, a inglesa Emma Hayes.
A jogadora a falar com a selecionadora dos EUA, a inglesa Emma Hayes. Alex Livesey

Korbin Albert tem 70 minutos distribuídos por duas das três partidas já feitas pelos EUA nestes Jogos, só com vitórias. Não foi utilizada contra a Alemanha, mas esteve em campo frente à Zâmbia e Austrália. Diante das mulheres vindas do país dos cangurus providenciou o golo da vitória, que garantiu a passagem em 1.º lugar do grupo rumo aos quartos de final do torneio olímpico, onde em sete participações a equipa apenas falhou as medalhas uma vez, no Rio de Janeiro. Face à seclusão dos treinos onde as câmaras não espreitam, o momento do golo, um grande golo, serviu para a curiosidade averiguar os comportamentos em torno da controversa futebolista.

De pronto, quase todas as companheiras de seleção a cercarem, vários abraços fundidos num só, as celebrações a uni-las. Uma das primeiras a levar o festejo para perto da marcadora do golo foi Lindsay Horan, a capitã. Em abril, pouco depois de todas as notícias a darem contra das partilhas da jogadora nas redes sociais, ela e Alex Morgan, outra das líderes da seleção dos EUA, expoente do futebol feminino, reagiram num evento conjunto, criticando-a sem pudores. “Queremos abordar esta situação desapontante. Trabalhámos muito arduamente para elevar a integridade desta equipa durante várias gerações e estamos extremamente, extremamente tristes que esta fasquia não tenha sido respeitada. Os nossos fãs e adeptos sentem que esta é uma equipa por detrás da qual se podem juntar, por isso é importante que continuem a sentir-se ouvidos e vistos, sem margem para dúvidas”, explicou Horan, incisiva na repreensão a Korbin Albert.

A média do PSG está, nestes dias, por onde costuma andar no resto do ano, na cidade da Torre Eiffel, por decisão de Emma Hayes, a inglesa contratada em novembro último para ser selecionadora, cargo que só assumiu em maio. Na quarta-feira, findo o jogo e visto o golo de Alberto, a treinadora que a convocou tocou no assunto: “Teve de fazer a sua parte e crescer um bocado. Todos sabemos que tem passado por muito devido às suas ações e está verdadeiramente arrependida pelo que fez. Sou mãe, o meu instinto é proteger, nunca vou mudar, mas não tolero [o que ela fez] e quero um ambiente onde as pessoas sinta que possam ser elas próprias.”

As jogadoras norte-americanas a irem celebrar com Korbin Albert, após o golo da jovem contra a Austrália.
As jogadoras norte-americanas a irem celebrar com Korbin Albert, após o golo da jovem contra a Austrália. John Todd/ISI

No futebol feminino, por oposição gritante ao que sucede na bola pontapeada por homens, há vários casos - sobretudo, fora de Portugal - de relações homossexuais publicamente assumidas pelas jogadoras, inclusive da mesma equipa. Recentemente, a sueca Magdalena Eriksson transferiu-se em conjunto com a dinamarquesa, e namorada, Pernille Harder do Chelsea para o Bayern de Munique. Tobin Heath e Cristen Press, duas internacionais norte-americanas e bicampeãs mundiais, que são um casal, criticaram abertamente Korbin Albert aquando da erupção da polémica.

Não era uma das que estavam no relvado por ocasião do golo frente à Austrália, mas Tierna Davidson, da seleção olímpica dos EUA e assumidamente gay (está noiva de uma ex-jogadora), comentou, na semana passada e no podcast ‘Good Game’, a polémica causada pela jovem futebolista. “Não há como negar que tem havido muito trabalho nos bastidores com a Korbin. Tem sido difícil ouvir as reações dos adeptos porque quero sentir que consigo representar a comunidade homossexual, quero que se sintam bem-vindos e representados nesta equipa”, admitiu, apontando o trilho: “Temos de aprender com o que fazemos nas nossas vidas e entender a dor que podemos causar. Quer seja, ou não, algo com o qual cresceste, ou te foi incutido desde tenra idade e possas não saber melhor, pode magoar outras pessoas.”

Tierna Davidson acrescentou que “sempre [acreditou] na capacidade das pessoas em mudarem”. Cercada então pelas pontas das lanças das críticas, que visaram Emma Hayes por chamar Albert aos Jogos Olímpicos, a treinadora explicava que a futebolista, “uma pessoa amável” e “um ser humano tremendo”, que estava “a trabalhar nela própria” após terem trocado algumas conversas sérias. Fast-forward até à ressaca do golo contra a Austrália e a jogadora disse que a selecionadora a faz “lembrar muito” a própria mãe.

Algum progresso terá havido nestas relações. Menos, quiçá, no comprimento de onda entre ela e uma lenda suprema do futebol feminino.

A celebração que Megan Rapinoe tornou histórica durante o Mundial de 2019.
A celebração que Megan Rapinoe tornou histórica durante o Mundial de 2019. Richard Heathcote

Ironia das coincidências, Korbin Albert estreou-se na seleção dos EUA com o número 15, outrora pertença de Megan Rapinoe, que se instou a reagir rapidamente às desculpas apresentadas pela jogadora após as notícias acerca das suas partilhas nas redes sociais e do ‘gosto’ no gozo com a lesão da ex-futebolistas no seu último jogo.

Primeiro, os perdões da mais nova: “Estou muito desiludida comigo mesma e peço profundamente desculpa pela dor que causei às minhas companheiras de equipa, outras jogadoras, adeptos, amigos e quem se tenha sentido ofendido. Acredito verdadeiramente que todas as pessoas devem sentir-se seguras e respeitadas em todo o lado e em quaisquer contextos. Sei que as minhas ações não viveram de acordo e, por isso, peço uma sincera desculpa. Prometo fazer melhor.” Depois, a tomada de posição de Megan Rapinoe.

Através do Instagram, numa publicação, em linguagem destes domínios, que contou com os ‘likes’ de outras lendas dos EUA como Becky Sauerbrunn ou Sam Mewis, escreveu: “Para as pessoas que querem esconder-se atrás do ‘as minhas crenças’ queria só fazer uma pergunta, estão a tornar algum espaço mais seguro, mais inclusivo, mais pleno, com algum semblante de melhor, para promover o melhor de alguém?... porque, se não estiverem, tudo aquilo em que acreditam é no ódio. E há miúdos que se estão literalmente a matar por causa de ódio.”No final da mensagem, deixou um “Wake TF up!”, correspondendo as siglas a impropérios para acentuar o “acordem!” em tradução mais suave.

No tal último jogo da carreira, tinha ela já 38 anos, Rapinoe exista à margem de tristeza, radiando alegria pelo que prefacioudali por diante. “Sou como uma orgulhosa tia gay”, brincou, “a olhar” para o futebol norte-americano com orgulho por saber “que o vão fazer avançar”.