Ainda no relvado e com o jogo acabado de fresco, Rúben Amorim apareceu de postura encavacada na flash interview da Sport TV. Com mãos nas ancas, pescoço curvado e cabeça inclinada, quase sem fitar os olhos do jornalista enquanto ouvia a primeira pergunta que foi, só poderia ser, acerca do que raio está a acontecer com ele, com o Sporting e com o Manchester United metidos lá para o meio. A vitória contra o Nacional da Madeira, para a Taça da Liga, tinha sido o jogo de despedida? Antes de lhe saírem palavras, o treinador já coçava a nuca, desviava o olhar para outro ponto longe e timidamente soltou que o “assunto ainda não está decidido”, expelindo depois um suspiro meio de alívio, metade riso sem jeito, quando a questão seguinte concedeu-lhe uma breve trégua e o interpelou acerca do jogo.
No desfecho da flash, de novo Rúben Amorim levou uma mão à mesma parte do cachaço, vestiu o mesmo cabisbaixo, revelou a mesma atrapalhação ao ter de se a ver com perguntas que o levaram a confessar que o seu inglês “está rudimentar e, portanto, vamos ver” e a argumentar que “tudo o que eu diga agora só vai alimentar o ruído”, ciente de como “dizer agora meias-coisas não parece o melhor”. Horas depois de o Sporting, à CMVM, confirmar que o Manchester United tinha vontade de pagar os €10 milhões da cláusula da sua cláusula de rescisão, coube ao treinador, com um jogo feito nos entretantos, dar a cara como tantas outras vezes ao longo dos últimos anos.
E quem diria que seria na comunicação, posto na mira de um campo de tiro de perguntas só sobre ele a quererem respostas que apenas ele poderia dar, que Rúben Amorim aparentaria tamanho desconforto, sentiria as cócegas de um momento tenso e revelaria atrapalhação a apalpar, pela fala, um terreno pantanoso.
Quem diria, porque foi na sala de conferências de imprensa de Alvalade, sentado perante dezenas de jornalistas ao longo dos últimos anos e em tantas outras vezes, que o técnico se apoderou de episódios delicados, domando-os com sua honestidade, transparência e falta de pudores em conversar abertamente, mais do que ser apenas uma das partes de um ping-pong de perguntas e respostas. Assim o conseguiu, com a sua aura de nem parecer estar conscientemente a tentar fazê-lo, mas por ser quem é, acerca dos efeitos das regras da pandemia, do “onde vai um vão todos”, do seu desgosto pela venda de Matheus Nunes, do “sairei pelo meu pé se não ganharmos títulos” ou da admissão culposa da sua ida a Londres, em abril último, para falar com o West Ham enquanto a época passada ainda não terminara.
A conferência desta terça-feira, no seu raiar, teve ares de ser mais uma dessas intervenções ponderadas e desempoeiradas de Rúben Amorim. De início, ele lá surgiu sem o nervosismo da flash interview. Mas, logo na resposta inicial, deixou sair uma certa incongruência. “O interesse do Manchester United é a única coisa que há neste momento, há o pagamento de uma cláusula e depois, quando tiver algo de mais concreto, virei aqui e assumir, porque passa sempre por ser uma escolha minha.” Ou seja, deu a entender que surgiu, por imaculada conceção, o clube inglês com a intenção de pagar o exigido pelo contrato de Amorim com o Sporting, sem ir ao óbvio - nenhuma equipa se predispõe a pagar o que seja por um treinador sem antes já ter falado com ele, sondado o interesse e aferido se os santos das partes batem certo.
Logo a seguir à sua maneira Amorimnesca de ser cândido a encarar os temas, soltou um “não vou dizer nada de jeito porque não tenho nada de jeito para dizer”. Quinze minutos mais tarde, tapava a cara com uma mão, trincava um dedo por um segundo e a libertava um riso nervoso ao ouvir o “nice to see you” de um jornalista inglês. “We have to wait a little bit more to explain everything I have to explain and then everything will be very clear” diria depois Rúben, com um ritmo calmo e mais pausado, no que se traduz em “temos de esperar um pouco mais para eu explicar tudo o que tenho a explicar e depois tudo ficará muito claro”. Quando escutou a pergunta seguinte, apoiou os cotovelos na mesa e uniu as mãos sobre a cara, franziu a testa, arregalou os olhos e acabou a apoiar a cabeça nas palmas abertas contra as bochechas.
Esses sinais não verbais terão aparentado mais coisas do que as que lhe faltaram na resposta que viria, entre elas a clareza. Estará Rúben Amorim em Old Trafford, no domingo, no banco do United contra o Chelsea?, perguntou o mesmo jornalista. “Estarei aqui”, pareceu assegurar o treinador, dando um bi-toque com o dedo indicador na mesa. “De certeza?”, ripostou o questionador. “Não sei”, riu-se o português. Num ápice de nem dois segundos, uma contradição que Rúben, sem poder ou querer esclarecê-la, tentou emendar com a talvez única garantia que poderia fornecer sem os imponderáveis da vida, que são ainda maiores no futebol, a tirarem das suas mãos: “Eu explicarei tudo. No final, como disse, será muito claro.”
Com razão, fintou uma questão sobre como foram parar certas cláusulas ao seu vínculo com o Sporting - “não vou estar a esmiuçar um contrato que é meu” - antes de ser contraposto com as suas declarações da última sexta-feira, quando se gabou de se sentir invejado pelos treinadores em Portugal pela sua estabilidade e autonomia no Sporting. “A estabilidade não é tudo na vida”, defendeu, ao gizar um argumento munido de um facto - “nenhuma das minhas palavras anteriores impede que aconteça alguma coisa a qualquer momento no mundo do futebol” - e a defender-se, no rescaldo, de um apontamento com o qual não o atacaram: “Não comparar, a única vez que faltei àquilo que disse foi no dia do avião, de resto, tenho máxima estabilidade, sou muito feliz aqui, gosto muito do meu staff e uma coisa não impede a outra. Vamos ver o que acontece no futuro, mas não voltei a faltar à minha palavra.”
E quanto ao episódio do jato privado que o levou a Londres, uma confissão: “Poderia não ter apanhado o avião? Epá, é verdade. Pensei que o campeonato já estava ganho. Não podia dizer isso na altura, mas agora digo.”
Desta vez, em que o Sporting não está a ver o verão bem perto no horizonte e um título de campeão para celebrar, mas ainda nem completou o primeiro terço de uma temporada, para já, prometedora de alegrias, Rúben Amorim não apanhou um jato privado rumo a Londres para falar com responsáveis do West Ham, mas tão pouco terá acontecido exatamente e apenas o que constou na sua descrição da atual encruzilhada: “Houve um clube que demonstrou interesse num treinador, essas coisas eu não controlo, o que controlo é a decisão que há daqui para a frente.” De novo, iria o Manchester United comunicar ao Sporting a intenção em pagar a cláusula de rescisão do seu treinador não sem antes falar com ele?
“O clube está a falar com outro clube, depois dá-se o próximo passo, com o treinador, isso acontece em muitas situações”, fintou Amorim, sentado mas esquivo nas palavras. Mas quer sair ou não quer? Antes do interesse do United em pagar a cláusula, falou com responsáveis do clube inglês? Perante a insistência, o treinador agitou-se, reagindo algo intempestivo: “Isso são coisas minhas, não se preocupe. Se eu quero ir ou não, é essa a decisão que estamos a falar.”
Vontade haverá de Rúben Amorim, pelo menos um interesse confessado de ir treinar o United, um gigante posto em coma desde a saída de Alex Ferguson, em 2013, constantemente perturbado por pesadelos caóticos e por uma desorganização que têm minado a experiência de todos os técnicos que por lá passaram desde então. Por mais que hoje pareça um faroeste de clube, a história, a aura, a mística farão o apelo dos red devils ser gravítico para qualquer treinador. “Não vos posso dizer mais nada, há uma intenção do clube, está em conversações com o Sporting, vai ser também uma decisão minha, mas tudo a seu tempo.”
E o tempo será uma questão nuclear, tanto quanto sensível: havendo logo uma partida contra um forte Chelsea, no domingo, a ir agora para Manchester, o primeiro teste de Amorim seria logo um dificílimo e carente de relógio para ele o preparar; não indo já, ficando mais uns dias, mantendo “o foco” que disse estar na preparação do jogo contra o Estrela da Amadora (sexta-feira) e saindo só depois, Rúben fará com que o seu sucessor no Sporting entre ao serviço também ele com pouco tempo para acautelar o encontro frente ao Manchester City, na Liga dos Campeões, de longe o mais desafiante da época.
Com a sucessão de perguntas diretas ao mesmo tópico, Rúben Amorim repetiu-se. Houve variantes do “eu não tenho nada para dizer” neste momento, realçou como quer vá ou fique “virei explicar tudo”, emanou um “não consigo dizer nada definitivo ou taxativo”. Na mira das questões, e havendo este impasse provocado por negociações a decorrerem, o treinador não mencionou o óbvio: que está a falar com pessoas e a pensar para os seus botões de modo a decidir se vai, ou não, sair do Sporting.
Quando à baila foram trazidos os jogadores e as suas suscetibilidades, admitiu a sua tristeza, entendeu que ficassem zangados, deu conta de que houve um “tirar o elefante da sala” antes da partida com o Nacional e do comunicado do Sporting sair. “Consigo perceber que os meus jogadores não estão iguais quando vão para uma palestra.” Foi também o isco que fez Rúben Amorim, sem ser questionado sobre esse passado, lembrar como, em 2020, saiu do SC Braga a meio de uma temporada quando surgiu o cortejo do Sporting. “Acontecem coisas que mudam a vida das pessoas”, resumiu. Recordar tal facto acentuou a iminência de um outro poder estar a aparecer - pela segunda vez na carreira, o treinador abandonar um projeto em curso sem esperar até ao final da época. “É uma situação difícil, percebo que os jogadores estejam desapontados, mas tenho de viver com isso. O importante é chegarmos ao fim, explicar tudo e dar a cara. Isso eu vou fazer.”
Titubeante e a hesitar, notou-se que Rúben Amorim quis dar-se às perguntas apesar de não ter, nem querer, respostas conclusivas. “As pessoas vão ficar esclarecidas quando tiver algo para dizer. Eu vou explicar tudo tintim por tintim, porque gosto, é mais fácil e os jogadores e os adeptos merecem.” O futebol muda de um dia para o outro, se há cliché extraído do futebolês com razão é que nunca se sabe o dia de amanhã, o que trarão negociações, conversas, exigências, dinheiros e colisão de vontades. “Não consigo prometer nada”, frisou o carismático treinador na conferência de imprensa, se calhar, mais desafiante da carreira, nas vésperas de ter de tomar a provável decisão mais importante da sua vida nos bancos.