São erros passionais, não constituem nenhum crime e, no entanto, lesam a pátria. Neste caso, a nação benfiquista. Entre Rui Costa e Bruno Lage, é difícil dizer qual deles ama mais o clube de sempre, sofre mais com os empates e com as derrotas, é mais adepto do que o outro e mais atraiçoado pela paixão desmedida.
Se calhar, no que respeita aos tiros desferidos nos próprios pés, revelam ambos idêntico grau de pontaria. E quando estão juntos na mesma sala, o caso assume consequências duplamente imprevisíveis.
Na qualidade de primeira figura da hierarquia, Rui Costa tem responsabilidades maiores. Se o míster responde em qualquer circunstância pela performance da equipa, o presidente tem de responder pelo exército de funcionários, a começar por aquele que fez regressar a casa depois de despedir Roger Schmidt.
Para o bem e para o mal, o líder máximo é a cara da instituição e o garante de uma gestão condizente com as exigências de uma marca que passa fronteiras e que não sai beneficiada com conversas de garagem. Pelo contrário, o que aconteceu na noite de sábado para domingo no estádio da Luz, diminuiu o prestígio do Benfica e voltou a dar a sensação de que cada um faz o que o coração recomenda quando está fora dos batimentos normais.
Isso não é nada compatível com um profissionalismo inegociável e que quem manda tem de esgrimir sobretudo nos momentos de crise, nos momentos, por exemplo, em que os jogadores andam 87 anos para trás e voltam a perder na Liga com o respeitável Casa Pia.
Ao ceder aos impulsos da ocasião e ao dirigir-se a um grupo inconsolável de adeptos que pedia explicações face à derrota histórica em Rio Maior, Bruno Lage ignorou as regras que delimitam o seu raio de ação e, mais grave do que isso, deixou Rui Costa esmagado entre o autocarro e a parede.
Partindo do princípio de que a celebérrima palestra de 35 minutos dada pelo treinador a um grupo liderado pelo não menos celebérrimo “Diogo” resultou em exclusivo da iniciativa de Lage, a margem de manobra do antigo delfim de Luís Filipe Vieira ficou reduzida a míseros centímetros. Admitir que o episódio tenha resultado do simples cumprimento de uma ordem superior é descer ao nível da mais pobre das novelas mexicanas, como se fosse razoável pensar que uma lenda como Rui Costa equacionasse o “linchamento” do plantel num áudio reduzido depois a minuto e meio.
LA(VA)GE DE BALNEÁRIO
Mesmo que o tenha feito de maneira involuntária, esse foi o segundo grande erro do técnico. Denunciou a falta de compromisso e de competência de jogadores que foram acusados de não saltarem, de não fazerem três passes seguidos e de oferecerem penáltis e carambolas, revelando uma ingenuidade que não se coaduna com o vocabulário usado e muito menos com as vezes em que coloca a mão à frente da boca quando pelo canto do olho vê uma câmara apontada.
Dominado por um insofismável benfiquismo, o setubalense tirou no parque subterrâneo da Luz a braçadeira de treinador e tornou-se ele próprio um “ultra”, ao ponto de fazer comentários sobre o preço de certos futebolistas, confundindo o espaço onde estava e perante quem estava.
O que devia estar reservado a um diálogo com a cúpula caiu na nuvem mediática e tornou infrutífera a desesperada conferência de Imprensa convocada menos de 24 horas depois e que só serviu para pôr a nu as manifestas fragilidades da estrutura.
Se a administração, nesta altura do campeonato, por fatores que não são assim tão difíceis de imaginar, considera que não estão reunidas condições para voltar a dar uma chicotada psicológica, o mínimo que poderia ter feito era poupar o técnico a um regresso ao lamaçal das justificações injustificáveis, especialmente proibidas na véspera de um desafio decisivo na Liga dos Campeões.
O controlo financeiro, os encargos com mais uma dispendiosa indemnização, o iminente fecho de mercado, as naturais dificuldades para encontrar um nome capaz de assimilar de imediato as especificidades do balneário e do futebol português, tudo isso pesará com fundamento na balança de uma SAD que respeite fronteiras da sensatez e do rigor e que, já agora, saiba comportar-se à altura dos acontecimentos.
Tão ou mais surpreendido que todos os outros portugueses que escutaram o áudio dos 90 segundos à Benfica, Rui Costa pode apresentar legítimos motivos para manter o status quo, mas não podia ter caído na armadilha que o levou a autorizar o evento e a sentar-se na primeira fila na sala da conferência de Imprensa de domingo à tarde.
Ao ratificar de corpo e alma (?) o segundo autogolo comunicacional de Bruno Lage e ao ser desafiado pelo próprio a testemunhar, o presidente validou em simultâneo a ultrapassagem e o atropelo de que foi alvo na garagem e num ano de eleições deixou acelerar a ideia de que a águia, quando a paixão se sobrepõe à razão, mais parece uma galinha sem cabeça.