Tudo o que Richard Florida escreveu estava próximo da verdade. O mundo tomou o seu lado, constatou-se que a maioria das suas previsões estavam correctas. A Creative Class transcende-se e reformulou o mercado de trabalho. Compõe aos dias de hoje uma terça parte da workforce americana, com 30 milhões de trabalhadores que ganham muito acima da média relativamente aos seus competidores da Service class e da Working class, que ficam retidos na precariedade salarial por nunca conseguirem saltar o muro da dicotomia trabalho manual – trabalho mental.

A forma que Richard Florida arranjou para explicar o desenvolvimento da economia mundial desde a viragem do milénio e sobretudo desde a crise pós-2008, articulando ideias de Marx, Schumpeters ou Jane Jacobs, ajudou-o a compreender o futuro, talvez antes do que a maioria.

A dimensão geográfica como ponto de desigualdade social é uma redundância não assim tão óbvia – e por entre a teoria e a articulação de dados e estatísticas encontram-se coisas giras, como a convicção de que é o impulso criativo que difere o ser humano das outras espécies e como essa criatividade exige longos raciocínios, levando a uma citação do psiquiatra Anthony Storr quando dizia que os «family man» estão, pela evidente falta de tempo, em desvantagem.

Florida apercebeu-se da correlação entre desenvolvimento económico, tecnológico e social quando percebeu que o Gay Index, o mapa de concentração de população homossexual, coincidia fortemente não só com a carta de densidade artística (concentração de escritores, pintores, e todo o tipo de entertainers) reproduzida no índice Boémio, como batia certo com Melting Pot index, ou a concentração de imigrantes e minorias e onde coabitavam o maior número de culturas.

Só com estes três parâmetros se definia a capacidade duma cidade ser Tolerante, um dos três critérios para um polo habitacional ser apelativo à Creative Class, uma nova geração de trabalhadores que valoriza a individualidade, a meritocracia e a flexibilidade e para a qual a diversidade é não só uma exigência, mas um imperativo moral.

Por isso, além de Tolerante, uma cidade terá que ser evoluída do ponto de vista Tecnológico e estar preparada, do ponto de vista de infraestruturas e planeamento estratégico, a criar e suportar uma grande dose de Talento. Assim definiu Florida o seu modelo dos 3 T’s, a melhor maneira de discernir o potencial económico e social duma cidade moderna.

Num subcapítulozinho da primeira parte do livro, Florida tenta chamar-nos à atenção, em duas longas páginas, para a titânica problemática entre a criatividade e a organização. «Uma das tensões ou contradições centrais do nosso tempo», imiscuindo-se na discussão para discernir duas vertentes: «alguns são mercuriais e intuitivos nos seus hábitos de trabalho, outros metódicos».

«O que todas essas pessoas têm em comum é a necessidade das organizações e ambientes que lhes permitam ser criativos – que valorizem os seus inputs, os desafiem, que existam mecanismos para mobilizar recursos em torno das ideias» explicava o que queria então a nova geração de profissionais.

Jogo Posicional vs. Jogo Funcional

Guardiola conquistou o mundo na última década e meia com os pergaminhos holandeses do jogo de posição, com a rigidez do espaço como referência para a coordenação tática duma equipa.

Se a liberdade total no último sector do campo pode revelar uma priorização do talento, todas as regras de construção e associação em fase recuada restringem o jogador mais impetuoso, mais selvagem do ponto de vista técnico ou emocional – a forma como Pep falou de Matheus Nunes muito recentemente, de não ser «clever enough» para jogar na intermediária, antes preferindo remetê-lo a papel na ala direita pela sua «physicality», denota o mesmo conjunto de crenças que William Whyte falou no seu The Organization Man, de 1956 e referenciado por Florida – que as grandes corporações seleccionam e favorecem o tipo de pessoa “who goes along to get along”, que não causa grandes constrangimentos e que foi assim que nasceu toda uma geração de burocratas, do qual a Creative Class é uma oposição directa.

Jamie Hamilton divagou no seu Guardiola, Valdano e a Tentação do Demiurgo sobre as tendências suicidas do técnico espanhol, que durante muito tempo foi acusado de insistir em si próprio e excessivamente em raciocínios táticos – que, como o Demiurgo, tentava a todo o custo controlar o caos.

Que os jogadores, na sua percepção, eram seres quase irracionais, altamente suscetíveis às alienações que o livre arbítrio poderia induzir na tomada de decisão. O medo das emoções sobre o racional. Por isso, não teve medo de associar a matriz controladora de Guardiola, de índole totalmente europeia, às condicionantes morais do Calvinismo.

O pecado original acontecerá inevitavelmente, a natureza pecadora como loop eterno do qual o ser humano nunca se poderá salvar, só por obra e graças de Deus. Adão estava destinado a pecar como os jogadores também estarão, se lhes derem liberdade de decidir. A total depravação.

Isto cria um problema. O próprio Florida reconheceu, através dum excerto de Adam Smith, sacado do seu The Wealth of Nations, que esse caminho só poderá resultar numa regressão civilizacional. «O homem que despendeu toda a vida a executar tarefas simples, não terá oportunidade de exercer o seu entendimento o ou exercitar a sua capacidade de invenção.»

A Creative Class irrompe na civilização ocidental como a resposta moral à era industrial, que criou a Working class, e ao pós-industrialismo, o capitalismo moderno que possibilitou a ascensão da Service class como resposta à mudança de hábitos familiares no pós-Segunda Grande Guerra. A Creative Class, originando-se das cinzas da recessão de 2008, contrapõe-se aos trâmites morais da Organizational Age, a era da burocracia e da disciplina, resquícios duma sociedade ainda dependente do trabalho manual.

Agora, com a mente como propulsor de toda a produção, quer-se impor a Creative Age, onde a disciplina terá que ser imposta de maneira muito menos opressiva e mais de acordo com as necessidades do trabalhador.

Quando Guardiola conquista a Europa no Ataturk, poucos acreditariam que se pusessem em causa os méritos da sua abordagem dentro de tão pouco tempo. A final com o Inter jogou-se em Junho, e em Novembro é quando Fernando Diniz sobe ao trono da Libertadores com o seu funcional Fluminense, dispondo a equipa sob premissas completamente antagónicas daquelas emuladas pelo campeão da Champions.

A equipa era livre; o ponto de referência não era o espaço, mas o esférico – era a bola que dizia o que cada um fazer, como se movimentar ou que alternativas surgiriam para prosseguir a jogada; eu associo-me ao meu colega, esteja ele onde estiver, aproximo-me dele e juntos encontraremos soluções recorrendo à criatividade.

Quando Scaloni pega na Argentina, foi preciso chegar a um consenso. A equipa que ganha o Mundial, dois meses depois das hiper aproximações do jogo Diniziano, será reconhecida como La Nuestra: um regresso às origens do futebol argentino, quando a técnica foi a arma para destronar o poderio físico dos ingleses, recorrendo em todo o campo ao toca y me voy, a tão portuguesa tabela, como complemento da proximidade posicional (potenciando a confluência sócioafectiva da equipa) – ultrapasso obstáculos porque surge um colega melhor colocado, que me permitirá conquistar metros sem necessidade de entrar em choque com o adversário. Toco-lhe o esférico e recebo-o mais à frente.

Valdano, argentino e filósofo do futebol enquanto fenómeno social e histórico, conhece como ninguém as suas origens de futebol associativo.

A cognição alimenta a congregação – e Florida defende o mesmo quando exalta o sentido cooperativo da Creative class, lembrando o John Seely Brown e Paul Duguid, no seu The Social Life of Information, chamam de «comunidades de prática» – que a criatividade surge sobretudo dum esforço conjunto dum determinado número de indivíduos, trabalhando em pequenos grupos a favor duma causa maior e que essas comunidades não são criadas artificialmente, mas sim resultado das ligações sócioafectivas, das relações humanas, da confiança mútua que resulta duma mesma identificação cultural.

Como Florida em 2002, o futebol argentino percebeu o futuro – adivinhou-o, percebeu que uma total identificação do colectivo com os valores da sua génese enquanto sociedade e nação, a total concordância com um conjunto de regras, hábitos e rituais – a cultura – será sempre o mais certeiro farol evolutivo.

Num mundo conquistado pela Creative Class e a sua era, a Argentina resolveu-se pelo mesmo, decidiu avançar nesse sentido com toda a força (calhando bem por ir de encontro à sua história).

O sucesso nas Pampas foi uma bomba na casa do vizinho. A recente humilhação brasileira, depois dum pré-jogo marcado por episódios de inofensivo bravado, dum 4-1 que pecou por escasso, levou uma vez mais à urgência da discussão: o Brasil, em caminho inverso, deixou de ser o motor geográfico da Creative Class futebolístico, de ser o país da Ginga, do Joga Bonito, campeão do mundo dia sim dia não para se sujeitar às alíneas burocráticas duma Europa que cada vez mais cedo lhe saca o talento disponível e o molda de acordo com os seus códigos.

Em rota contrária, o Brasil evoluiu rumo à working class, num futebol algemado, sem grandes ideias do que realmente quer ser – e Tite, que se tornou campeão da Libertadores e do Mundo à boleia do pragmatismo, rapidamente percebeu o fiasco de transformar a Canarinha no seu Corinthians.