A gravita em torno de Francesco Totti vem do seu percurso. Campeão do mundo em 2006, com a Itália, quando jogou no píncaro dos torneios com uma placa e parafusos na perna, o grosso da sua aura nem sequer vem desse cume que alcançou. Totti preencheu a carreira por inteiro na AS Roma, fiel ao ninho onde se fez o segundo melhor marcador de sempre (250 golos) e o terceiro com mais partidas na Série A, insuflando o seu encanto ao rejeitar uma proposta do papão Real Madrid - por duas vezes. Ainda jogava e já exercia poderes de semi-deus, cheio de devotos a chamarem-lhe o ‘rei de Roma’ ao longo, e já depois, das 25 épocas que contou no clube.

Francesco Totti foi um one club man, uma raridade no crescente futebol da pressa, do tudo para ontem e das cifras milionárias. Jogou até aos 40 anos, a sua despedida ficou como matéria para lágrimas, atuando na reforma como a voz da consciência da AS Roma, ouvida aquando de qualquer aparato ou peripécia enquanto se vai dedicando a torneios amadores de futebol na capital italiana, como se nada fosse. Sendo sinónimo de Roma e da Roma, há umas semanas começou a sua imagem a aparecer noutra cidade, feita alvo de sanções, apresentada em modo desafiante: “O Imperador Viaja Até à Terceira Roma.”

O anúncio, estampado em outdoors em Moscovo, alude à condição imperial da reputação adquirida pelo italiano e à que preenche o imaginário recente de algumas fações conservadoras da Rússia - a da capital do país ser o berço de um novo império. A autoria dos cartazes pertence à Bookmaker Ratings, a principal plataforma de apostas online russa, cujo evento, batizado de RB International, terá lugar, descreveu o “Financial Times”, no Palácio de Ginástica Viner-Usmanova, arena que é propriedade de Alisher Usmanov, um dos abrangidos pelo guarda-chuva de sanções impostas aos oligarcas do país desde a invasão à Ucrânia iniciada há três anos.

Tribuna

No evento, badalado como “um jantar de gala”, estarão cerca de 600 pessoas. Francesco Totti será o convidado de honra, pago chorudamente pela sua presença sem pruridos em tal ser assumido. “Sem detalhes, trata-se de um número de seis dígitos em euros”, disse Asker Tkhalidzhokov, diretor da casa de apostas anfitriã, ao “Vedomosti”, um jornal russo. O antigo internacional italiano aterrou, esta segunda-feira, em Moscovo, na companhia do filho, trajado de negro e com um boné na cabeça, a sua cara a não esconder alguma surpresa ao estender a mão a algumas pessoas que lhe são apresentadas logo no aeroporto.

Essas e outras serão empregadas pela Bookmaker Ratings, a responsável pelo evento que estará sob investigação no Reino Unido desde 2022 por alegadamente ser o núcleo de um esquema da Rússia para tornear as sanções internacionais. Noticia o “Linkiesta”, um jornal italiano, que a empresa “criou centenas de perfil falsos e anónimos” que terão “comprado uma cryptomoeda com cartões pré-pagos” para ser “um dos hubs” usado por “organizações criminais para a lavagem de dinheiro”. Em 2020, o consórcio do Projeto de Reportagem para o Crime Organizado e Corrupção já escrevera sobre os negócios obscursos da casa de apostas.

Antes de o antigo capitão giallorossi pisar solo russo as críticas já o rodeavam, apelando ao seu bom-senso. “Soubemos com surpresa e lamento à possível participação do Francesco Totti no evento”, reagiu Andrea Massaroni, coordenador da delegação de Roma do +Europa, partido centrista e europeísta de Itália, urgindo a que o reformado futebolista “ficasse do lado certo da história” e esfriasse a sua intenção de viajar para a Rússia: “O tempo chegará para teres o afeto dos teus fãs russos e bielorrussos, mas não agora, em que o regime de Moscovo trouxe a guerra à Europa e o de Minsk reprime de forma sangrenta todas as liberdades.” Nona Mikhelidze, cientista política do Instituto de Assuntos Internacionais da capital italiana, expôs ao “Financial Times” que a decisão de Totti reflete a “ignorância” e a “falta de empatia” dos italianos para com “o sofrimento humano na Ucrânia”.

Nada demoveu Francesco Totti de voar rumo à capital russa ou de responder aos críticos. “Não sou um política nem um diplomata”, defendeu, projetando-se como “um homem do desporto” que “promove os seus valores à volta do mundo”. O italiano ergue que “sempre” o fez, “primeiro enquanto futebolista, agora com um novo papel”. E mais: “Há anos que tenho ido a todos os países para os quais sou convidado a falar sobre futebol e não teria problemas em ir a Kiev pelos mesmos motivos.” O italiano, pelos vistos, não é esquisito quanto aos lugares onde leva a sua aura.