“A maioria das democracias não morre com tanques. Morre nas urnas.” — Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, How Democracies Die

Esta frase, famosa e inquietante, não é apenas um alerta retórico, é o diagnóstico do tempo em que vivemos. Em 2025, a Europa assiste a uma transformação profunda e silenciosa: onde antes as democracias tremiam perante a força dos tanques, hoje vacilam sob o peso do voto popular. Viktor Orbán consolida o seu poder na Hungria; Marine Le Pen surge como principal força em França; a AfD cresce na Alemanha; Giorgia Meloni lidera em Itália sob o olhar atento de Bruxelas; e, em Portugal, André Ventura desafia o status quo e reconfigura velhos equilíbrios políticos.

O populismo, que antes era um grito de revolta, tornou-se um ator estabelecido no palco do poder, desafiando as elites tradicionais e as instituições europeias, que muitos consideram distantes e surdas às suas preocupações.

Como alertam Levitsky e Ziblatt, as democracias não morrem por força externa, mas por erosão interna — quando os seus guardiões, leia-se partidos, media e elites, falham na missão de proteger o contrato democrático.

Da falência da centro-esquerda ao voto de ressentimento: as causas profundas da ascensão populista

No pós-guerra, a Europa assentava num eixo estável: centro-direita liberal contra centro-esquerda social-democrata. Esse equilíbrio entrou em colapso. O SPD afunda-se na Alemanha, o PS francês mal resiste, o PSOE espanhol enfrenta desgaste e, em Portugal, apesar da alternância, o PS sofre a sua derrota política mais dura, tornando-se a terceira força no Parlamento.

A ascensão da extrema-direita assenta em quatro pilares: o medo da perda identitária, acentuado pela globalização e pelas mudanças sociais; as desigualdades agravadas pela crise de 2008 e pela pandemia; a desconfiança nas instituições, com a sua linguagem tecnocrática e distante; e o colapso da centro-esquerda, que perdeu a ligação às suas bases tradicionais.

Este último ponto é fundamental. O centro-esquerda falhou em apresentar uma narrativa clara sobre temas essenciais como segurança económica, migrações e identidade. Perdeu uma batalha cultural que não teve a coragem de travar. Um dos maiores erros foi confundir tolerância com abdicação. Ao recusar reconhecer os limites sociais e culturais da integração e ao transformar qualquer tensão em tabu, muitos dirigentes optaram por doutrinar em vez de escutar os anseios da população.

Como bem lembrou Karl Popper, uma sociedade verdadeiramente tolerante precisa de ser capaz de discutir os limites da própria tolerância ou arrisca-se a ser destruída por ela. No caso do centro-esquerda, não foi a intolerância que precipitou a queda, mas uma certa superioridade moral que impediu o diálogo honesto com o mal-estar crescente de parte significativa da população.

A questão migratória é um exemplo paradigmático. Durante anos, os alertas vindos das autarquias — câmaras municipais, juntas de freguesia, associações locais — foram ignorados ou desvalorizados pela elite metropolitana de Lisboa que, em nome de um cosmopolitismo bem-intencionado, recusou ouvir quem estava no terreno diariamente. São os autarcas que gerem, no dia a dia, os impactos da convivência multicultural. São eles que sentem o pulso das escolas, dos centros de saúde, da habitação social, da segurança comunitária.

Ignorar esses sinais foi um erro estratégico e democrático. Integrar comunidades diversas não é o mesmo em Lisboa, habituada ao multiculturalismo, e numa vila do interior envelhecida, onde mudanças rápidas geram resistência e perceções de insegurança. Além disso, o aumento do custo de vida e a diminuição do bem-estar agravam esta sensação de vulnerabilidade que torna a frustração social mais profunda e facilmente explorável. O verdadeiro fosso não é entre culturas. É entre a realidade sentida e a intenção política.

Reconhecer estas tensões não é racismo. É respeito democrático, que deve ser tratado com humanismo e responsabilidade. O erro foi empurrar essas preocupações legítimas para a margem, com rótulos fáceis. Quando a política se recusa a escutar e se limita a doutrinar, o ressentimento encontra eco. E muitas vezes, quem o ouve não o faz para integrar, mas para dividir.

A ascensão da extrema-direita não é racional, é visceral. A pandemia, a inflação, a crise energética e a guerra alimentaram um eleitorado que se sente esquecido por Bruxelas e pelas elites. Em países como Roménia, Polónia e Portugal, o voto de protesto deixou de ser episódico para se tornar estrutural. Partidos com discurso pró-Trump ganham terreno, combinando argumentos nacionalistas, securitários e identitários, muitas vezes com base em desinformação, mas com forte impacto emocional.

Mais do que programas, a nova direita oferece pertença. É o “nós contra eles” num mundo onde o eleitor não lê manifestos, apenas sente que alguém finalmente o ouve.

A normalização: quando o extremo é só mais uma opção

“O perigo já não vem só dos que atacam a democracia, mas dos que fingem defendê-la enquanto a desfiguram.” — Levitsky & Ziblatt

Meloni já não assusta Bruxelas. Orbán já nem surpreende. O Vox senta-se à mesa com o PP. Le Pen deixou de ser caricata: lidera confortavelmente as sondagens em França, mesmo após ter sido condenada e tornada inelegível para as presidenciais de 2027. Perante este cenário, impõe-se uma pergunta: o que significa, para uma democracia, quando a figura mais popular nas sondagens é impedida de se candidatar por decisão judicial? Será justiça em ação ou um erro de timing institucional que aprofunda ainda mais a desconfiança dos eleitores? Deixo para os juristas responderem.

Em democracia, o crescimento de partidos como o Chega não se explica apenas pelos seus méritos. Explica-se, sobretudo, pelas falhas dos outros. André Ventura vence porque, para muitos, já nada do que vem dos partidos tradicionais parece credível.

Desde condenações por difamação e incitação ao ódio até episódios como o furto de bagagens em aeroportos ou suspeitas de envolvimento com prostituição de menores, qualquer destes seria, noutros tempos ou contextos, motivo de deslegitimação imediata. Aqui, não se tornam combustível, mas também não têm consequências.

Quando nada disto trava nem abranda o crescimento de um partido, o problema está, inevitavelmente, noutro lado: no descrédito do sistema, na falência da representação e na ausência de resposta política.

É fácil apontar o dedo a Ventura. Mais difícil — mas essencial — é perguntar: o que falhou tão profundamente nos partidos do centro, para que um partido com este histórico, sem experiência de governação, com quadros muitas vezes sem preparação técnica e com líderes cercados por processos, seja visto como mais autêntico, mais próximo, mais "como nós"?

Durante demasiado tempo, temas como segurança, imigração, justiça ou identidade foram ignorados ou tratados com paternalismo. Onde devia haver escuta, houve silêncio. Onde devia haver debate, surgiram rótulos e marginalização. E as consequências estão à vista.

O Chega não cresce por apresentar soluções estruturadas, mas por nomear aquilo que os outros evitam. A sua retórica simples responde a um vazio político, mas também emocional.

A pergunta, afinal, não é como o Chega cresce apesar de tudo. É como os partidos do centro caíram tanto que esse "apesar de tudo" já não pesa. Porque, no fim do dia, o que está em causa não é só a ascensão do Chega. É a falência do centro como espaço vivo de representação.

Esta ascensão não é inevitável, mas é reveladora. Se queremos defender a democracia, temos de a renovar. E essa renovação não virá do moralismo, da superioridade intelectual ou da censura de pensamento. Virá da coragem de representar com clareza, empatia, humildade e verdade. Porque quando nem a ética nem a doutrina travam votos, o problema já não está apenas na revolta. Está na ausência de alternativa credível.

O que resta da promessa europeia?

A União Europeia nasceu como antídoto ao autoritarismo e à guerra, prometendo mais do que um espaço económico: um ideal de paz, liberdade e coesão social. Durante décadas, transformou antigas ditaduras em democracias vibrantes, com progresso sem precedentes. Hoje, porém, enfrenta desafios que exigem reflexão e renovação.

A Europa vive um momento de hesitação. As periferias sentem-se esquecidas, os jovens procuram oportunidades e as classes médias enfrentam crescentes dificuldades. A globalização, a revolução digital e a transição energética alteraram profundamente a economia, mas a política tem falhado em acompanhar esse ritmo. Para muitos, Bruxelas tornou-se símbolo de uma burocracia distante, mais reguladora do que protetora.

Como alerta Yascha Mounk, “e se a democracia liberal for uma fase passageira?”. Talvez o problema esteja menos no modelo e mais na sua aplicação desigual e na linguagem distante. A democracia é, acima de tudo, uma relação de confiança construída com diálogo, transparência e participação.

Valorizamos verdadeiramente a democracia, ou corremos o risco de a dar por garantida? A ascensão da extrema-direita é sintoma de frustração com promessas falhadas. Mas esta crise é também uma oportunidade para a UE reencontrar a sua missão e unir os seus cidadãos em torno de um futuro comum.

A Europa pode reinventar-se. Com vontade política e compromisso coletivo, pode transformar desafios em oportunidades, reforçar a coesão e construir uma democracia próxima das pessoas, que valorize a diversidade e partilhe os frutos do progresso. O futuro depende da nossa capacidade de acreditar e agir juntos.

Mas quem vigia os vigilantes?

A história mostra que as democracias raramente caem de forma abrupta. O declínio é lento, silencioso, normalizando o intolerável. Mas, como lembra Timothy Snyder, “o tempo de agir é quando tudo ainda parece normal”. E essa janela ainda está aberta.

Durante décadas, a Europa viveu sob vigilância, da Cortina de Ferro à ameaça nuclear, e essa tensão impunha responsabilidade. Hoje, sem um inimigo externo claro, a vigilância precisa ser interna: quem vigia os vigilantes? Quem desafia o desleixo democrático e a tecnocracia sem alma?

É verdade que as instituições falharam em momentos críticos. A linguagem hermética e a obsessão pela estabilidade tornaram a política previsível e, por vezes, apática. Esse vazio emocional abriu espaço ao radicalismo, que cresce onde falta empatia. Como alertava Popper, tolerar o intolerável pode destruir a própria tolerância.

Mas há caminhos. Na Suíça, a democracia não se limita a eleições: vive-se no quotidiano, com referendos, deliberação cívica e protagonismo cidadão. Talvez o antídoto à crise democrática seja mais democracia, não menos.

A Europa precisa de mais do que reformas técnicas. Precisa de um renascimento ético, que devolva à política o seu papel credível, inspirador e corajoso. Como defendem Levitsky e Ziblatt, democracias morrem devagar, mas podem renascer. Se houver vontade. E tempo. E esforço.

Porque vigiar não é desconfiar. É cuidar. É cidadania ativa, comprometida e esperançosa.

A música que não queremos ouvir

““What we’ve got here is failure to communicate...”

A Europa vive uma guerra silenciosa com discursos que não se escutam, cidadãos que se afastam. Como cantam os Guns N’ Roses, o verdadeiro problema está no “fracasso em comunicar”, com clareza e verdade.

Se a política continuar a falar sozinha, a democracia será consumida pelo ruído da desconfiança. O refrão “I don’t need your civil war” ecoa como um apelo à escuta. Porque quando o diálogo falha, o ressentimento ocupa o lugar. E se o voto é uma escolha livre, também pode ser a última antes do apagão democrático.

Não basta aceitar os resultados: é preciso reconstruir a confiança de quem se sente fora do jogo. As democracias morrem devagar, mas só renascem com participação. E entre a morte e o renascimento, apagam-se direitos, silenciam-se vozes, esquece-se a memória.

Para quem for hoje ao concerto dos Guns N’ Roses em Coimbra, deixo esta passagem de “Civil War” para cantar bem alto:

“Look at the hate we're breeding
Look at the fear we're feeding
Look at the lives we're leading
The way we've always done before.”

Estas palavras não são só denúncia, são convite à mudança. Que a música seja sempre chamada à liberdade e à esperança.

E que nunca nos falte canção para tocar, nem liberdade para a ouvir.