
Para quem não sabe, a metáfora da pílula vermelha (que remete ao filme Matrix) é utilizada pela extrema-direita como símbolo de que estão a ver a realidade como ela é, enquanto todas as outras pessoas vivem na ilusão. Para uma social-democrata, o que pode ser, nestes dias pós-eleitorais, uma pílula desse tipo?
Sinto que estava a evitar tomá-la há uns meses e que fui obrigada a engoli-la em seco no domingo, reconhecendo que o meu país é um absoluto eco do que está a acontecer do outro lado do atlântico. Trump ganhou as eleições em Janeiro. Desde aí, os melhores estrategas culturais andam a tentar interpretá-lo. No meu entender, bem. Era fácil reconhecer os mesmos sinais em Portugal, mas, apesar disso, nunca pensei que a esquerda tivesse a derrocada que teve e que a extrema-direita se reforçasse como se reforçou. Enfim, alimentamos a ilusão até à última.
O que dizem então os ditos estrategas culturais internacionalmente, pós vitória de Trump, que pode servir a leitura dos resultados de domingo? Há um artigo no Financial Times de 2 de Fevereiro de 2025 que vale a pena. “Welcome to the ‘mask-off’ era” ou sejam bem-vindos a uma nova era ‘sem máscaras’ em que o cool já não é alinhar pelo politicamente correcto ou ser um virtuoso a todo o custo - a favor de todas as minorias, mesmo que não se pertença a nenhuma delas; com moderada ambição material e ainda menos dado à ostentação, mesmo que tenha dinheiro e prazer em fazê-lo; a favor de consumir eticamente e diminuir a pegada ambiental, mesmo que saiba que isso não tem quaisquer consequências práticas para o ambiente (e, por inerência, para si e para os seus).
‘Eu e os meus’, a dada altura, quando tudo começa a ruir, é o que interessa ao ser humano, mesmo que haja ideologias a querer convencer as pessoas do contrário. É o instinto de sobrevivência. E na luta pela sobrevivência, são os mais jovens, as chamadas Geração Z e os Millennials, que se destacam. São eles, em grande medida, os que mais consideram que esta matriz não lhes serve.
Em sede de C-Lab acompanhamos, há 15 anos, através do nosso barómetro anual, a satisfação das pessoas com a vida e as expectativas quanto ao futuro. Inicialmente, a nossa ‘curva da felicidade’ estava alinhada com o desenho em ‘U’ que é a norma (simplisticamente falando, é suposto ser feliz na juventude, ter uma crise na meia-idade e depois recuperar o positivismo). Hoje, a nossa curva da felicidade, é praticamente uma rampa. A matriz serve, essencialmente, aos meus velhos.
Também são os homens quem mais recusa um virtuosismo ou uma etiqueta social prescrita à força e também disso havia numerosos sinais. De forma simplista (desculpem-me, mas tiremos a máscara): ser homem, branco e ter sucesso não pode envergonhar ninguém.
O que os estrategas culturais nos dizem, também, é que estamos a sair de um ‘modo light’ (leve) e a dar entrada num ‘modo dark’ (escuro). O modo leve é aquele que forçava o positivismo. ‘Vai tudo acabar bem’. Era o que colocava o Serviço Nacional de Saúde num pedestal, mesmo sabendo que 4 milhões de portugueses têm seguro de saúde. O que continuava no elogio da escola pública apesar de 25% dos estudantes do ensino secundário estarem inscritos em escolas privadas. Pelo que percebo, no ‘modo dark’ não se mata a escola pública nem o Serviço Nacional de Saúde, mas reconhece-se a escuridão em que vivemos nesses domínios.
É verdade que no escuro não conseguimos avançar, mas no escuro temos de apurar os nossos sentidos. Enquanto se procura a claridade, damos espaço à ambiguidade, à dificuldade, mas, também, à criatividade que a reinvenção acarreta. A par com o ‘modo dark’ emerge, assim, um ‘optimismo dark’ ou ‘optimismo trágico’. A sua definição é a procura de significado e de outro futuro no meio das inevitáveis tragédias da existência humana. Na noite das eleições vi um rapaz jovem a ser entrevistado na sede de campanha do Chega. Dizia ele ao jornalista «vai ver que o Chega vai mudar este país». Optimismo trágico, pensei.
Enfim, ainda estamos em mudança de ‘modos’. A negação da realidade é confortável. É mais leve. 41% dos portugueses diz estar a ver menos notícias ou ter deixado praticamente de ver notícias. 29% dizem o contrário - estar a ver mais notícias.
Uns ligam-se à realidade, outros fogem dela. É natural que assim seja. Mas cada um de nós pode procurar a sua pílula vermelha. Pelo menos, para tentar perceber o que aconteceu domingo nas urnas.