Olhe para o seu telemóvel e pense na forma como esta tecnologia evoluiu no último quarto de século. Atente, igualmente, no número de atualizações e de novas aplicações que já instalou, nos últimos meses, no aparelho que segura na mão. Um pequeno exemplo de como, nos dias de hoje, a tecnologia humana não tem parado de evoluir a um ritmo que parece incessante.
Já na década de 1860, Karl Marx dava conta, espantado, dos 500 martelos diferentes, cada um para fins diferentes, que eram produzidos na cidade inglesa de Birmingham. No entanto, há cerca de 1,2 milhões de anos surgiu na Bacia de Olorgesailie (atual Quénia), na que foi a primeira indústria de produção padronizada de utensílios, uma revolucionária tecnologia de machados em pedra lascada que pouca inovação sofreu nos seguintes 700 mil anos. As ferramentas em pedra da cultura Acheulense, como ficaram conhecidas, eram bifaces e tinham um perfil muito mais regular que as suas predecessoras. Estas características tornavam-nas mais versáteis e eficientes para o mais diverso tipo de tarefas, como caçar animais, raspar peles, serrar madeira ou desenterrar tubérculos comestíveis.
O problema é que entre há 500 mil e 320 mil anos uma erosão em larga escala eliminou os vestígios arqueológicos na região, lançando um manto negro sobre o que fez surgir, precisamente nesse período, toda uma nova tecnologia de ferramentas – mais pequenas, portáteis, com maior capacidade de precisão e feitas de outros materiais, principalmente obsidiana –, que tornou obsoletos os utensílios do Acheulense e mudaria o destino da humanidade. O último sinal que existe, na zona, de um machado em pedra Acheulense data de há 499 mil anos.
Um novo estudo, liderado pelo paleoantropólogo Richard Potts, do Museu de História Natural do Instituto Smithsonian, na cidade de Washington, veio lançar luz sobre este mistério, apontando o dedo a um conjunto de mudanças climáticas que ocorreu no período mencionado. Potts e a sua equipa já sabiam, de investigações anteriores, que há 500 mil anos a região foi afetada por erupções vulcânicas que rasgaram a superfície, drenaram lagos e criaram pequenas bacias sujeitas a ciclos de inundação e seca. Esta mudança drástica na paisagem natural, assim como a instabilidade que nela se instaurou, obrigou os seres humanos a terem de se adaptar às circunstâncias.
Para perceber com mais pormenor o que fui sucedendo entre há 500 mil e 300 mil anos, os cientistas, liderados por Potts, fizeram em 2012 um furo de 139 metros no antigo leito de um lago na Bacia de Koora, vizinha à de Olorgesailie. A amostra que obtiveram – os 139 metros – corresponde a um milhão de anos de acumulação de sedimentos. Mais tarde, e com a ajuda dos colegas dos Museus Nacionais do Quénia, usaram microscópios para analisar esses mesmos sedimentos, tendo prestado atenção à presença de algas e microalgas, que são indicadores do nível de água do antigo lago e da sua salinidade, e a indícios da cera que cobre as folhas, a qual permite perceber se o ambiente envolvente era constituído por plantas lenhosas ou herbáceas.
Uma vez junta toda a informação, descobriu-se que entre há 500 mil e 300 mil anos o lago na Bacia de Koora secou oito vezes. Nos primeiros 600 mil anos (da amostra) o meio-ambiente na região estava estável, mas há 400 mil anos tudo começou a mudar: a água doce tornou-se escassa e desapareceu, com os tipos de plantas dominante a alternar rapidamente entre as lenhosas e as herbáceas. Ainda segundo o estudo, publicado em outubro na Nature, os registos fósseis do período em análise mostram que quando começaram a existir menos plantas herbáceas deu-se uma mudança na vida animal, com os grandes herbívoros a serem substituídos por animais de menor porte e mais ágeis, como a gazela, a cabra-de-leque e o cudo (todas elas espécies de antílopes).
Este novo cenário, de mudança e instabilidade, pode ter empurrado os humanos de então a desenvolver novas tecnologias de caça, capazes de apanhar presas mais pequenas e rápidas, assim como ao surgimento de uma rede mais vasta de vias por onde viajavam humanos, matérias-primas e ferramentas, além de poder ter fomentado métodos de comunicação mais complexos, salienta o grupo de investigação.
A obsidiana era o ‘ouro negro’ há 320 mil anos
Tudo isto vem bater certo com as conclusões de estudos anteriores que contam com a assinatura de Richard Potts, publicados simultaneamente em abril de 2018, também na Nature. De acordo com os mesmos, os registos arqueológicos até hoje encontrados puxam a o aparecimento das novas, mais pequenas e leves ferramentas para há 320 mil anos – mais 20 mil anos do que à época se pensava –, coincidindo com a altura em que o Homo sapiens, a nossa espécie, terá surgido na Terra.
Os vestígios destas tecnologias inovadoras, que surgiram na Bacia de Olorgesailie há 320 mil anos (sendo que a já mencionada erosão em larga escala ainda não permite saber se apareceram mais cedo), apontam para a utilização de outras matérias-primas sem ser a pedra. Entre elas está a obsidiana, negra, brilhante e vítrea, formada pelo arrefecimento da lava de vulcões, e pedaços de cherte (uma rocha sedimentar) nas cores branca e verde. Estas rochas foram obtidas em outros locais distantes ou através de redes de troca de objetos.
As lâminas de obsidiana que passaram a ser produzidas na região podiam ser acopladas a madeira, de modo a criar lanças e outros projéteis. Para o paleoantropólogo do Instituto Smithsonian, o mais provável é que muitas destas ferramentas compostas fossem depois trocadas, no local, por mais matéria-prima na forma de obsidiana, pois ela só podia ser obtida a quase cem quilómetros de Olorgesailie.
Adicionalmente, e ao que parece, os humanos instalados na Bacia de Olorgesailie também cinzelaram pedras vermelhas e negras, usando-as como se fossem lápis de cera para pintar os seus corpos ou os instrumentos de caça, lançam como hipótese os investigadores envolvidos nos estudos. Segundo eles, estes vestígios coloridos constituem um primeiro sinal de comportamento simbólico por parte de humanos.