
A possibilidade de os trabalhadores “comprarem” dias adicionais de férias está a gerar debate não apenas no âmbito parlamentar e enquanto medida de impacto social, influenciadora do tão discutido equilíbrio entre a vida profissional e a vida pessoal e da saúde mental, mas também no meio empresarial.
Para alguns, trata-se de um passo essencial para reforçar a autonomia e o bem-estar dos trabalhadores, numa altura em que se dá cada vez mais atenção às condições de trabalho das pessoas e em que se luta pela atração e fixação de talento, mas outros alertam para o risco de uma medida desse género poder trazer desigualdades e até contribuir para mascarar problemas estruturais.
Seja como for, a proposta do governo já está a ter efeitos e, se for materializada em lei, promete mexer com a relação entre empresas e colaboradores — mas muitas organizações já estão a antecipar-se a essas alterações.
Há vantagens reais em oferecer a possibilidade de os colaboradores adicionarem dias de férias àqueles que lhes são garantidos por lei? E essas benesses limitam-se aos trabalhadores ou têm também capacidade de trazer efeitos positivos ao funcionamento e resultados das organizações? E como se garante que as condições são equilibradas para todos?
O SAPO ouviu cinco organizações — IDEA Spaces, KLx, ManpowerGroup Portugal, Olisipo e Zühlke —, nas áreas de espaço de cowork e comunidade, campus tecnológico, recrutamento e outsourcing de talento, consultoria tecnológica e inovação, para perceber como esta proposta está a ser recebida e que implicações poderá ter no futuro do trabalho em Portugal.
"Não se trata da perda de um dia de trabalho, mas de um investimento no bem-estar e produtividade." — Íris Matos, IDEA Spaces

Para Íris Matos, People and Operations Manager da IDEA Spaces, a proposta surge num momento oportuno: “Chega num momento em que o debate sobre produtividade, bem-estar e saúde mental ocupa um lugar de destaque nas decisões corporativas.” A empresa já implementa várias medidas de descanso e flexibilidade, como a “Zero Friday”, que permite duas sextas-feiras de descanso por mês, e o programa “Be OK”, com apoio psicológico e ações de sensibilização.
A responsável defende que a medida deve ser acompanhada por um pacote mais robusto de benefícios: “É fundamental que as empresas adotem medidas concretas e mensuráveis com impacto nas pessoas.” Para o IDEA Spaces, a proposta do governo é bem-vinda, mas não essencial: “O IDEA não necessitará de um modelo semelhante, pois ambicionamos reunir as condições necessárias para dar mais dias de férias aos nossos colaboradores.”
"A flexibilidade no trabalho é cada vez mais valorizada. O objetivo não é impor dias extra, mas dar autonomia." — Sara Mendes, KLx

Na KLx, a medida já é uma realidade. Desde 2024, os colaboradores podem adquirir dias extra de férias através da plataforma de benefícios da empresa. “A flexibilidade no trabalho é uma característica cada vez mais valorizada pelos trabalhadores”, afirma Sara Mendes, Head of People & Talent. A empresa oferece ainda 120 dias de home office por ano e horários flexíveis.
O maior desafio, segundo Sara, está na comunicação: “Queremos que seja um benefício funcional e não uma complicação burocrática.” Ainda assim, acredita que a medida pode fortalecer a relação entre empregador e trabalhador, desde que seja adotada com responsabilidade: “É preciso desmistificar ainda mais e assumir os benefícios no local de trabalho como ferramenta.”
"Esta proposta pode reforçar a fidelização e atrair talento." — Rui Teixeira, ManpowerGroup

Rui Teixeira, Diretor-Geral do ManpowerGroup Portugal, vê a proposta como uma resposta às novas exigências do mercado de trabalho. “Segundo dados dos nossos estudos, 49% das pessoas sofrem de stresse no trabalho todos os dias e 93% veem a flexibilidade como algo importante nas suas vidas profissionais.” A empresa já oferece até 13 dias adicionais por ano, além de um modelo híbrido e iniciativas de bem-estar físico e mental.
Apesar do entusiasmo, Rui alerta para a necessidade de regulamentação clara: “A definição de limites e condições de aplicabilidade será imprescindível, com a negociação em concertação social a constituir uma etapa fulcral.” E acrescenta: “Vemos hoje que muitos trabalhadores estão dispostos a fazer este trade-off entre salário e dias de férias.”
"Nem todos têm a mesma capacidade financeira para 'comprar tempo'." — Paula Peixoto, Olisipo

A Olisipo adota uma posição mais crítica. Paula Peixoto, Diretora de People and Culture, reconhece o potencial da medida, mas alerta para o risco de desigualdade: “Mesmo que a medida seja apresentada como proporcional, a verdade é que beneficia sobretudo quem tem maior margem salarial.” Para a empresa, o bem-estar deve ser acessível a todos, independentemente da sua situação financeira.
A responsável sublinha que a proposta só será eficaz se integrada numa cultura de cuidado: “Podemos cair na tentação de usar esta medida como uma ‘solução mágica’ para problemas estruturais como o excesso de carga ou a falta de apoio.” A Olisipo aposta numa política de acompanhamento próximo e escuta ativa, com apoio psicológico gratuito e formação contínua.
"Dar autonomia para gerir o tempo é um sinal de confiança e de valorização da individualidade." — Ana Correia, Zühlke

Na Zühlke, a proposta é vista com bons olhos, mas a empresa prefere oferecer dias de descanso sem redução salarial. “Dispomos de benefícios como dias de folga extra, flexibilidade de horários e possibilidade de solicitar uma licença sabática”, explica Ana Correia, responsável de Recursos Humanos. A empresa concede ainda três dias de folga adicionais por ano, os “Creative Days”.
Ana destaca que a medida pode ser positiva, mas deve ser bem enquadrada: “Dar aos colaboradores a possibilidade de gerir de forma mais autónoma o seu tempo é um sinal de confiança. Mas é essencial que esta medida venha complementar uma estratégia mais ampla, com políticas equitativas e acessíveis a todos.”
Uma medida com potencial, mas que exige cautela
A proposta de permitir aos trabalhadores comprar dias adicionais de férias está longe de ser apenas uma questão administrativa. Ela toca em temas centrais da cultura organizacional contemporânea: bem-estar, equidade, autonomia e confiança. Para algumas empresas, como a KLx e a IDEA Spaces, trata-se de uma extensão natural de práticas já em vigor, que colocam o colaborador no centro da estratégia. Outras, como a Olisipo e a Zühlke, alertam para os riscos de desigualdade e para a necessidade de uma abordagem mais sistémica e inclusiva.
O que se revela transversal é a valorização crescente da flexibilidade como fator de retenção e motivação. Seja através de dias extra, horários ajustáveis ou apoio à saúde mental, as organizações estão a redesenhar o trabalho para responder às expectativas de uma força laboral cada vez mais consciente do seu valor e das suas necessidades.
Se esta proposta do governo vier a ser implementada, o seu impacto dependerá menos da letra da lei e mais da forma como cada empresa a interpreta e integra no seu modelo de gestão. O verdadeiro desafio será garantir que o tempo de descanso não se transforma num privilégio, mas numa ferramenta acessível e eficaz para construir ambientes de trabalho mais humanos, sustentáveis e produtivos.