Serviços de Finanças, emissão ou regularização de documentos, passaporte de última hora, temas de justiça e de segurança social. Escolha o seu serviço público e nem lhe passe pela cabeça simplesmente dirigir-se a um balcão. Ou marca antes — naturalmente, depois de perceber se o serviço que pretende gere as marcações por telefone, e-mail ou por um formulário digital perdido no labirinto do respetivo portal —, ou não será atendido nem verá resolvida a situação.
É inconstitucional? É. Mas os serviços do Estado continuam a praticar maioritariamente os modelos dos tempos da pandemia, mesmo tendo recebido ordens para normalizar o atendimento. E os cidadãos pouco podem fazer.
"A abertura, a acessibilidade e a transparência dos serviços públicos são verdadeiras exigências constitucionais, importando ainda ter presente que uma Administração de ‘porta aberta’ é sinónimo da imprescindível presença do Estado no território", vincava a Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, no relatório publicado em fevereiro deste ano, após análise ao atendimento nos serviços públicos decorrente das queixas recebidas.
Alertando que, "passada a emergência sanitária, muitas dúvidas e queixas sobrevieram sobre como estão a ser retomados os canais entre os serviços públicos e os cidadãos", a Provedora comprova a constatação com números. No Instituto de Registos e Notariado, os atendimentos presenciais sem marcação entre 2018 e 2022 caíram 30%, na Segurança Social ficaram reduzidos a metade, nas Finanças reduzem-se a menos de um quarto...
O mesmo alerta é deixado nesta semana pelo advogado Francisco Teixeira da Mota, num artigo de opinião no Público, no qual recorda que a ProPública – Direito e Cidadania dirigiu uma queixa a diversas entidades, incluindo o Presidente da República, por considerar que "os meios alternativos de atendimento que se perpetuaram após a crise pandémica violam garantias constitucionais expressas e afetam o bem-estar geral das pessoas e comunidades". Desde esse novembro de 2022 até hoje, porém, pouco (se alguma coisa) se alterou.
"Na Loja do Passaporte do Aeroporto de Lisboa, onde é possível fazer emissão no mesmo dia, o atendimento apenas é possível... por marcação!" Ou seja, tem de prever a emergência, descreve Ricardo Simões Ferreira, relatando a sua experiência (e a viagem perdida) após a extinção do SEF. "As Lojas do Passaporte existentes nos aeroportos de Lisboa e do Porto estão reservadas apenas para a emissão de Passaporte Urgente e para Passaporte Urgente Aeroporto, única e exclusivamente com marcação prévia, devendo para tal, entrar em contacto com o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), indicando nome completo, n.º do Cartão do Cidadão, local de agendamento pretendido (Loja Aeroporto de Lisboa/Loja Aeroporto do Porto), contacto telefónico, bem como razão do pedido de urgência e data preferencial para atendimento", lê-se na página online daquele serviço.
A verdade é que, dois anos e três meses após ter terminado o Estado de Emergência que obrigava ao atendimento remoto e por agendamento, os serviços públicos mantêm o modelo de funcionamento da pandemia. O que significa que qualquer cidadão que não saiba que precisa ou não tenha capacidade para fazer um agendamento não verá a sua situação resolvida, correndo até o risco de perder benefícios e prazos legais.
O governo de António Costa deu a ordem em dezembro de 2022, já oito meses passados sobre o fim do Estado de Emergência: aos serviços públicos cabia garantir pelo menos metade de atendimentos sem marcação prévia. "O governo, através do secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, que é responsável pelos temas relacionados com o atendimento, deu uma orientação a todos os serviços para que fosse assegurado que pelo menos 50% dos atendimentos pudessem ser realizados sem essa marcação prévia", declarou então Mariana Vieira da Silva.
Mas em agosto do ano passado, o então ministro Fernando Medina era confrontado pelo PCP no Parlamento porque nada se alterara. "O governo tem de tomar as medidas adequadas face à escassez enorme de funcionários que está a comprometer o Estado de Direito democrático, porque é vergonhoso", comentou então a bastonária dos advogados, Fernanda de Almeida Pinheiro, vincando que muitas vezes as pessoas precisam de falar com funcionários para poderem ser esclarecidas.
A meio de 2024, mesmo após inúmeras queixas e um extenso rol de recomendações da Provedora da Justiça, tudo continua igual. Os serviços do Estado continuam a atender apenas por via digital ou por marcação, chegando ao cúmulo de "obrigar" os cidadãos a prever as suas urgências com tempo suficiente para garantir a marcação para atendimento urgente.