
Treinar a gestão e a contabilidade como na vida real, enquanto se está a aprender e ter os resultados a contar para conseguir um melhor emprego. O ISCAL (Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa) fez um acordo para a utilização da Plataforma Marketplace Simulations, software desenvolvido e utilizado pelas principais universidades nos EUA, que se baseia em gamificação e oferece essa solução a todos os seus alunos, de forma a acelerar a sua adaptação ao mercado de trabalho, desenvolver e melhorar a componente académica enquanto resolvem problemas de gestão de stress e potenciam as soft skills.
Em entrevista ao SAPO, Pedro Pinheiro, presidente do ISCAL, explica como esta ferramenta faz a diferença numa escola que conta com 4 mil alunos e quer abrir-se ainda mais à internacionalização, integrando também a Inteligência Artificial como instrumento de estudo. "Não faz sentido fingir que não existe", diz, defendendo a necessidade de preparar os alunos para ganhar capacidades de espírito crítico e curadoria de resultados. Integrado no IPL e em pleno processo de modernização, o ISCAL tem atualmente 204 professores e uma empregabilidade de 98%, mas não está de braços cruzados. "Os ciclos de aprendizagem hoje são muito rápidos; é preciso rever o que ensinamos a cada par de anos", e trazer as soft skills para o centro das prioridades. E a transformação da escola, que pretende torná-la mais ágil e preparada para o futuro, também passa por aí.
O ISCAL tem estado em grande transformação. Quais são as principais novidades?
Temos tentado aumentar a notoriedade e a visibilidade da instituição, que muitas vezes não era percecionada como existe. O facto de sermos um campus vertical por vezes não permite que as pessoas percebam e o que há cá dentro: temos 3500 alunos, sete licenciaturas, cinco mestrados, 200 professores, tudo aqui a acontecer diariamente, e sentimos aqui alguma necessidade de abrir as portas. Há também um traço distintivo que para mim é ponto de honra na implementação da estratégia: só me faz sentido que exista ensino superior se ele estiver articulado com os empregadores.
Essa é uma visão já diferente da tradicional.
Sim, o que existia antigamente era mais uma visão de ensino superior era uma coisa, o mercado de trabalho outra, e não se misturavam. Ainda existe alguma dificuldade em certas franjas do ensino superior que acham que nós ensinamos o que queremos e o mercado utiliza o que há. Isto para mim não faz sentido nenhum. E na área da gestão a evolução é de tal forma rápida que se não estivermos alinhados com aquilo que o mercado procura rapidamente temos cursos obsoletos. No curto prazo, isso não compromete, mas no médio e longo prazo, forçosamente vai comprometer a capacidade de atração e afetar forçosamente o posicionamento da instituição face aos empregadores.
Como é que essa ligação se traduz em empregabilidade?
Nós temos taxas de emprego a rondar os 100% — há algum desemprego que verdadeiramente não o é, o estudante que decidiu fazer um gap year e não quis ir para o mercado de trabalho, o que decidiu continuar a fazer uma formação. E isto reflete bem a perceção do mercado face às competências daqueles que nós formamos.
Estamos a falar de quantas pessoas a sair da escola todos os anos?
É variável, mas entre os 350 e os 500 formados por ano, o que é considerável face ao panorama e ao tecido empresarial português. Vivemos uma época de quase pleno emprego e nós também beneficiamos dessa conjuntura, mas isto é conseguido também com essa que tem sido uma das principais apostas, a de interligar ou reforçar os laços entre a instituição de ensino superior e os agentes de mercado.
A evolução é de tal forma rápida que se não estivermos alinhados com aquilo que o mercado procura rapidamente temos cursos obsoletos.
E como se faz essa aproximação?
Em primeiro lugar, trazendo-os para dentro da instituição, reforçando a presença deles no contexto da instituição, seja participando em aulas abertas seja fazendo sessões de apresentação de employer branding puro e duro ou até convidando-os para discutir planos de estudos. Nós alterámos o plano de estudos de todas as licenciaturas e em todas elas foram chamados os principais empregadores para que nos dissessem onde é que o nosso talento falhava, de que é que o mercado hoje precisa e prospectivamente quais podem vir a ser as competências necessárias. Trouxemos isso para dentro de casa e depois tentámos encontrar um ponto de equilíbrio entre aquilo que, do ponto de vista científico, faz sentido e aquilo que o mercado considera relevante. Se recuarmos há cinco anos, a inteligência artificial ou a sustentabilidade não eram temas, falar sobre competências transversais começava a ser... hoje são temas obrigatórios. Não faz sentido alguém fazer um curso de gestão ou de contabilidade, de finanças, e não falar de inteligência artificial ou de competências transversais, das soft skills. Eu prefiro o estudante ou um licenciado que tenha mais competências pessoais aceleradas e desenvolvidas e às vezes um bocadinho menos de competências técnicas do que o inverso, porque as técnicas consigo ensinar, mas as competências pessoais, se não forem devidamente aceleradas, quando se chega ao mercado de trabalho já é muito mais difícil de serem trabalhadas.
Estamos a falar especificamente de que competências?
Um pouco de várias coisas em simultâneo. Desde aquelas mais tradicionais, como a capacidade de trabalho em equipa, comunicação e gestão de conflitos e de tempo até algumas que eram menos usuais mas são muito importantes: a questão do design thinking, a capacidade de pensamento crítico, de encontrar soluções, de perceber como é que as ferramentas como o ChatGPT podem ajudar ao desenvolvimento pessoal (branding ou marketing). E depois o que tem mais ligação à academia do que ao mercado de trabalho, mas que é importante, como aprenderem a fazer bem uma entrevista, como se apresentar, como fazer um pitch... Ou seja, temos trabalhado tudo isto à parte, através de uma estrutura que chamamos Academia de Soft Skills.
É uma área própria dentro do ISCAL?
Sim, é uma área que é gratuita, que os alunos todos podem frequentar. E trabalhamos sempre com parceiros, para não ser uma coisa endémica: para cada tópico, convidamos um parceiro do tecido empresarial para vir fazer um workshop. E agora internalizámos essa ferramenta e vai fazer parte obrigatoriamente dos currículos dos cursos, terão uma disciplina específica, que na prática é de competências transversais, onde se incluem técnicas de apresentação em língua estrangeira e mais uma série de coisas, uma disciplina meio desconstruída face àquilo que nós conhecemos, porque vai ser uma disciplina por módulos, com várias pessoas a interagir com eles nos módulos para desenvolvê-los logo no primeiro ano. É ali que sentimos a maior dificuldade, aquela integração pós-secundário no ensino superior. E faz sentido a par das competências mais académicas, mais técnicas. Por exemplo, noutro tipo de formações, eu sou completamente apologista de que os alunos tenham uma disciplina de literacia financeira logo desde o início. Numa escola como o ISCAL já têm essas noções... só o curso de Solicitadoria sai um pouco das ciências empresariais, e mesmo assim têm Finanças, Empreendedorismo, etc., para terem uma base que lhes permita atuar em vários palcos.
Então esse é um dos traços distintivos que tem implementado no ISCAL.
Sim, é tentar aproximar a escola do mercado de trabalho, tentar aproximá-la da sociedade e, pegando nos mais de 260 anos que tem de história, tentar dar-lhe uma visão mais contemporânea, mais visível. Nós temos empregabilidade e temos, há oito anos consecutivos, 100% das vagas de alunos ocupadas, o objetivo agora é aumentar a qualidade da empregabilidade e a qualidade com que nos percecionam.
A questão do design thinking, a capacidade de pensamento crítico, de encontrar soluções, de perceber como é que as ferramentas como o ChatGPT podem ajudar ao desenvolvimento pessoal (branding ou marketing). E depois o aprenderem a fazer bem uma entrevista, como se apresentar, como fazer um pitch... Temos trabalhado tudo isto na nossa Academia de Soft Skills.
Quem é que o ISCAL considera concorrência?
ISCTE, ISEG. Universidade Nova e Católica. Lisboa é um terreno fértil em escolas de negócios, mas temos de ter a visão de olhar para o que vai à frente e procurar atingir esse patamar — que neste momento é a Nova SBE — sempre com uma cautela: qualquer um deles está perfeitamente implantado no mercado e tem bem definida a sua área, e nós temos também de consolidar aquela que é a nossa área de referência, que é o curso de Ciências Empresariais com uma forte componente em Contabilidade, Fiscalidade e Auditoria. Se nos deixamos transformar muito, a nossa proposta de valor dilui-se, deixa de haver diferenciação, e teremos muito mais dificuldade em comunicar a diferença que faz a nossa escolha. Portanto, há sempre esse cuidado de direcionar os cursos, focá-los muito na base sólida de Contabilidade, Auditoria, Fiscalidade porque é isso que o mercado espera quando vem aqui buscar alguém. Mas de facto Lisboa tem uma concorrência muito forte, tirando a Faculdade de Economia da Universidade do Porto, as maiores escolas estão aqui, num raio de 30 quilómetros.
O facto de o ISCAL ser um Politécnico ainda é um tema?
Sim, é um estigma social que tentamos combater, mas que em alguns contextos ainda impacta... até porque continuamos a ter ferramentas um bocadinho diferenciadas para travar um combate que no terreno é igual.
Por exemplo?
O financiamento do ensino superior e as oportunidades de financiamento nem sempre são exatamente as mesmas, portanto, do ponto de vista de política macro em termos de ensino superior, ainda continua a haver diferenças que depois se vão sentindo de cima para baixo. Em termos práticos, do dia-a-dia, fazemos todos exatamente o mesmo, temos todos o objetivo de desenvolver competências em estudantes, habilitá-los o melhor possível para irem para o mercado e ter uma carreira e serem cidadãos plenos. Eu não partilho de todo a ideia de que nós só formamos técnicos, acho que a nossa missão tem de ser formar mais do que a parte técnica, dar-lhes competências, ferramentas para eles conseguirem olhar para a sociedade de forma mais completa. Daí considerar temas como a sustentabilidade importantes na formação, para que consigam, quando vão para o mercado, serem mais do que um bom técnico, serem pessoas e profissionais completos.
Ao contrário da maioria das instituições, o ISCAL tem instalações verticais, funciona num prédio alto, no centro de Lisboa. Isso traz mais vantagens ou desvantagens?
É sempre o elefante na sala, mas a verdade é que não só estamos no centro de Lisboa, muito bem servidos pelos transportes, como o facto de ser um campus vertical cria uma proximidade muito grande, quer entre estudantes quer na relação do estudante com o professor. Porque toda a gente frequenta os mesmos espaços, cruzam-se todos e isso leva a uma rede de conhecimentos muito desenvolvida, porque se dão com todos os colegas, mesmo de anos e cursos diferentes, com os professores. E eles também cultivam esta proximidade (e são das maiores referências a nível nacional), deixando-se questionar, dando conselhos. Os alunos olham para eles como uma espécie de mentores de carreira.
O ISCAL está também a conseguir atrair alunos estrangeiros?
Sim, vêm sobretudo através do programa Erasmus, mas tivemos um crescimento muito acentuado. Hoje temos uma comunidade com mais de uma centena de estudantes Erasmus, que trazem um colorido diferente, até do ponto de vista cultural. Temos alunos de 33 nacionalidades diferentes — os que vêm de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Brasil, mas também já, por força de outras circunstâncias, um conjunto de alunos provenientes do Leste, da Moldávia, da Roménia, da Ucrânia... ou seja, é uma mescla interessante, e que gostaríamos de aumentar. Este nível de internacionalização é importante, porque quanto mais diferenciados formos culturalmente, melhor sai o produto final, quanto mais blend de experiências, mais interações, mais os alunos ganham. Ainda agora estamos a ter um curso focado na forma como a IA afeta os modelos de negócio e desenvolvimento de competências não formais dos estudantes, e temos um grupo que tem 10 austríacos, 10 alemães, 10 portugueses, que se vão reunir em Lisboa para fazerem uma semana com vários parceiros, da PwC à Academia de Código e Câmara de Lisboa, para lhes mostrar como é que a IA está a afetar cada um destes parâmetros, uma coisa muito hands-on, muito prática e imersiva, cujo fim último é tocar estes dois aspetos, mas acima de tudo ter um contexto muito multicultural. Isto ajuda a que entendam como a minha forma de olhar para a mesma situação é diferente do comportamento, visão e abordagem de um estudante austríaco, por exemplo.
O facto de ser um campus vertical cria uma proximidade muito grande, quer entre estudantes quer na relação do estudante com o professor.
A multiculturalidade é importante logo no ensino?
Sim, desta multiplicidade de perspetivas os alunos saem a ganhar, enriquecem conhecimento, conseguem, acima de tudo, desenvolver uma competência que eu acho que hoje falta muito, que é a tolerância. Conseguem perceber que às vezes é preciso colocarmo-nos no lugar do outro, vermos as coisas do ponto de vista do outro, perceber como é que ele analisa uma situação que é exatamente igual. Até porque, infelizmente, a maior parte destes jovens que estão a estudar hoje não ficará a trabalhar em Portugal e esta multiculturalidade prepara-os melhor para enfrentar esse tipo de desafios. Para os alunos Erasmus, nós temos um grupo de disciplinas que são lecionadas integralmente em inglês e que temos vindo a alargar; e a ideia é rapidamente ter um curso todo em inglês, de uma ponta à outra.
É um esforço necessário para atraírem mais do que Erasmus e alunos dos PALOP?
Sim. Neste momento estamos com um ano já completamente em inglês e a ideia é rapidamente chegar aos três anos completamente em inglês e aí sim trabalhar a captação de estudantes internacionais, que venham fazer o curso de uma ponta à outra. Lisboa é uma cidade muito interessante para isso, apesar de o alojamento ser uma dificuldade acrescida para alguns públicos.
Estamos a trabalhar para reforçar a atração de alunos internacionais.
Sentem isso?
Sim, já sentimos em alunos da Europa central e de Leste alguma dificuldade em suportar os custos com habitação em Lisboa e por aí temos vindo a perder alguma atratividade, porque entre virem estudar para Lisboa ou irem para Coimbra ou Aveiro, onde é mais barato, preferem essas opções. Onde temos reforçado é nos países com poder de compra mais elevado: temos mais estudantes alemães, finlandeses, belgas, holandeses e de outros países do género, para quem esses custos não são uma questão face à realidade do país de origem. Mas sim, temos de reforçar a atração de alunos internacionais, não há outra hipótese.
E para contornar esse problema, já estão a fazer algum tipo de parceria para terem soluções de habitação para os alunos estrangeiros?
Sim, temos neste momento a ser concluído, via Politécnico de Lisboa (IPL), onde nos integramos, uma residência em Benfica com mais de cem camas e está em desenvolvimento um projeto conjunto para uma residência muito grande, com o ISCTE e a Universidade Nova, nas Portas do Benfica, com o apoio da Câmara da Amadora. Por isso estamos a agir no sentido de encontrar soluções e se necessário teremos de recorrer à oferta privada que existe, mas esse tipo de acordos implica preços muito mais elevados, a oferta que há em Lisboa é cara para um estudante que vem da Polónia ou da Estónia, da Letónia ou da Lituânia.
Ou do Algarve.
Claro, desde logo para os portugueses é praticamente impossível. Basta ver que num dos operadores privados que há em Lisboa o preço dos quartos começa nos 695 euros por mês.
São 700 euros por quarto numa residência?
Numa residência universitária, sim, depois tem serviços de limpeza e outros, mas 700 euros para um agregado familiar típico em Portugal é um valor incomportável se nós assumirmos que o salário médio anda na casa dos 1200; porque ainda tem os outros custos todos de viver deslocado, com alimentação, etc., que torna cada vez mais difícil esta mobilidade de estudantes dentro do país.
Como é que a inteligência artificial (IA) tem impactado os cursos e até, mais do que isso, a maneira de viver das universidades, porque muitos alunos já chegam às aulas a saber melhor do que os professores pelo menos parte dos truques a que podem recorrer no seu percurso académico?
Tem vindo a alterar, sim, desde logo obrigou aqui a uma discussão do modelo pedagógico do IPL e das unidades orgânicas. Isto não é consensual, mas para mim não vale a pena sequer termos a ideia de que não temos de integrar a IA. Se a maioria dos alunos já recorre à IA, não vale a pena iludirmo-nos a pensar que eles não vão usar IA para fazer os trabalhos. Se calhar a abordagem tem de ser: já que o vão fazer, então vamos explicar como é que se utiliza a ferramenta, como é que se critica o que vem dali, etc. Eu acredito que aí que se vai jogar muito, na diferenciação mais do que na utilização. E sem perder a capacidade crítica. Quando eu estava ali pelo 5.º ano, a discussão era se os alunos podiam utilizar máquinas de calcular, porque se achava que íamos deixar de ter a capacidade de fazer contas, de saber a tabuada, etc. Agora é mais ou menos a mesma coisa. Os alunos não vão perder competências, mas nós temos de lhes explicar como é que se utiliza a IA de forma correta, ensinar que os algoritmos da IA falham, ao estádio de desenvolvimento que temos hoje, que alucinam em algumas tarefas, dar-lhes a capacidade crítica de perceber o que é utilizável e o que não é. Negar que existe não vai resolver rigorosamente nada, até porque os empregadores já consideram que é uma competência-chave.
Conhecimentos em IA já são uma ferramenta que os empregadores pedem?
Sim, o domínio deste tipo de ferramentas, nomeadamente o ChatGPT, mas sempre naquela perspetiva de automatização ou aceleração de tarefas, sem prescindir da parte da natureza humana, que vai continuar a ser necessária para criticar o que dali vem. Portanto, nós temos vindo a adequar os modelos pedagógicos e estamos numa fase de discussão grande sobre como é que eles devem ser integrados, de que forma, mas a partir do próximo ano letivo isso tem de estar já bem definido, em que tarefas estarão. Até porque, provavelmente mesmo para o professor, deixará de fazer sentido perder tempo com algumas tarefas que são rotineiras e podem ser automatizadas. Ou seja, ele vai ter de explicar do ponto de vista teórico o que é a tarefa, qual é o impacto, mas também como é que se automatiza: pôr o estudante no final da cadeia de valor que é analisar o output, em vez de o pôr na tarefa que não acrescenta valor e que é de execução rotineira. Eu não sou de todo daqueles que acreditam que a inteligência artificial nos vai tirar o trabalho a todos. Vai sem dúvida obrigar a adaptar alguns perfis, fazer aparecer novas profissões, mas não vamos ser todos controlados pela máquina. A parte operativa, essa, sim, poderá ser substituída rapidamente, a parte crítica, a parte inicial e a parte final, vão continuar a ser tarefas necessárias, pela questão de bom senso, pela questão da capacidade crítica, da criatividade, porque a máquina é é limitada nessas áreas.
Os alunos não vão perder competências, mas nós temos de lhes explicar como é que se utiliza a IA de forma correta, ensinar que os algoritmos da IA falham, ao estádio de desenvolvimento que temos hoje, que alucinam em algumas tarefas, dar-lhes a capacidade crítica de perceber o que é utilizável e o que não é.
E isso implica trazer o quê para a sala de aula?
Implica consegui desenvolver nos estudantes esta perceção. Hoje, se pedir a um aluno meu para fazer um trabalho e não lhe disser mais nada, sei que os mais distraídos vão ter expressões como o ônibus e a ecônomia e coisas do género; os um bocadinho mais despertos já saberão como pôr o GPT a responder em português e de uma forma mais formal e já me enganam com mais facilidade. Isto é a realidade. Não vale a pena acharmos que não existe. Mais vale ir trabalhar com ela, explicar aos estudantes como é que se utiliza bem, quais são as limitações do ponto de vista ético, quais são as linhas que não devem ser cruzadas. E fazê-los perceber onde é que eles efetivamente podem acrescer valor. Ele não podem competir com a máquina, porque perdem tempo, nunca ganham. Então, onde é que podem acrescentar após o output da máquina e como é que validam e incrementam é onde o ensino tem de apostar. Temos de reorganizar o ensino para ajudar a perceber como é que vai incorporar. É a analogia da máquina de calcular ou do computador e ver agora como é que se vai incorporar os algoritmos de inteligência artificial.
É o grande desafio?
O grande desafio para o ensino é a rapidez com que este contexto muda: entre a disseminação que houve do Chat GPT e chegarmos agora há 15 dias ao DeepSeek, o período foi curtíssimo. E daqui até outro salto os ciclos vão sendo cada vez mais curtos. Na semana passada estava a ler um artigo sobre algoritmos de aprendizagem autónoma que já não precisam de ser ensinados. Eles próprios têm a capacidade de procurar fontes e de aprender. Os ciclos evolutivos são cada vez mais curtos e o ensino tem de ter a capacidade de se ir adaptando a ciclos curtos. Se calhar há 20 anos um ciclo destes podia demorar uma década, mas hoje a cada três anos, que é o mínimo de um ciclo formativo, nós temos de olhar para os cursos e perceber o que é que já não faz sentido ou passa a fazer. Por exemplo, há seis anos não fazia sentido falar em Finanças Verdes ou Sustentáveis. Hoje não faz sentido que um estudante de Finanças não saia com essas competências. Há, portanto, um trabalho cada vez maior das escolas também de percecionarem essa evolução. Daí também na relação com o mercado, que é win win: as empresas conseguem que os perfis cheguem o mais acelerados possível e o mais próximos daquilo que o mercado necessita, mas também a instituição ganha, porque ela existe para desenvolver competências em jovens adultos que tenham alguma utilidade na inserção no mercado. Se o mercado pede um tipo de competências e nós damos outra, não estamos a desenvolver a nossa missão.
Esse desafio de manter a universidade à frente do seu tempo está agora mais exacerbado?
Está, a necessidade é maior porque os ciclos de inovação são mais curtos, e isso implica que a universidade também esteja mais desperta, tente antecipar mais a evolução que vai existindo, para que, quando ela acontece, tenha a capacidade de estar lá e dar resposta.
É por aí também que passa a plataforma que lançaram, com gamificação, para integrar os cursos? Como é que funciona?
Esse é um traço muito característico do ISCAL, um traço distintivo na forma. A metodologia da gamificação não é nova, mas é um traço distintivo que nós temos mantido e que vamos manter nesta reestruturação. Todas as licenciaturas, sem exceção, têm no final do curso uma disciplina de simulação aplicada — à contabilidade, à gestão, às finanças, à solicitadoria, aos negócios internacionais, etc. E o objetivo é trazer para um ambiente controlado, que é o da sala de aula, um contexto que é real. Mas com nuances. Ou seja, alguns são feitos mesmo sob a forma gamificada, como é o caso dos projetos de gestão e de comércio, que são simuladores que nós adquirimos a uma Universidade dos Estados Unidos e que reproduzem o ambiente de negócio puro e duro, pondo os alunos a competir, não com os colegas da turma, mas com os colegas do ano todo, e em que a tomada de decisão de uns influencia o resultado de outros. Portanto, não é um jogo fechado, a mesma decisão neste ano pode não ter o mesmo efeito que teve no ano anterior, porque o resultado da minha decisão está dependente dos dos outros, o que os obriga a terem uma perceção diferente.
Os ciclos de inovação são mais curtos, e isso implica que a universidade também esteja mais desperta, tente antecipar mais a evolução que vai existindo, para que, quando ela acontece, tenha a capacidade de estar lá e dar resposta.
E há outros modelos para outros cursos?
Sim, por exemplo na contabilidade o que eles simulam é um ano de atividade de uma empresa, desde a criação à apresentação do relatório e contas para uma assembleia geral, fazem as atividades todas durante o equivalente a um ano, quer sejam contabilísticas quer sejam declarações fiscais e na parte de gestão. E o objetivo é que no dia que eles terminem curso tenho as competências o mais aceleradas possíveis. Nós tivemos os primeiros simuladores em 2002, mas isto evoluiu imenso. E surgiu porque os empregadores nos diziam que o conjunto de conceitos que dávamos ao longo do curso não se traduziam em capacidade de aplicação nos alunos: eles chegavam ao mercado e tinham dificuldades. Estas unidades são agregadoras, ou seja, o que é que eles fazem: na gestão, vão ter de ir buscar conceitos de marketing, de contabilidade, de finanças, tentar relacionar tudo e perceber qual é o impacto que aquilo tem. E neste caso, numa empresa, qual o impacto da sua tomada de decisão também no resultado final. Aquilo depois resume-se tudo num scorecard que lhes dá pontuação e os coloca no mercado hierarquizados uns face aos outros, por quota de mercado, por resultados.
Ou seja, os mais capazes de aplicar esses conceitos acabam por ter vantagem.
Sim e também desmistifica a ideia de que os estudantes não gostam de trabalhar. Porque eu acho genuinamente que esta geração é super capacitada. Não é que tenha mais capacidades do que as anteriores, mas tem competências diferentes daquelas que as gerações anteriores tinham e uma forma de as encarar diferentes. Eles têm ciclos de aprendizagem muito mais curtos — é impensável hoje eu estar a dar uma aula teórica de hora e meia e esperar que os alunos estejam concentrados. Até do ponto de vista neurológico, há algumas explicações para isso, eles habituaram-se a ter respostas rápidas, recompensas rápidas e uma necessidade de gratificação, positiva ou negativa, também muito grande. E os ciclos em que precisam destas três coisas são curtos; se não conseguimos dar isso, o que vai acontecer é que se desmotivam. Por isso têm de ganhar técnicas importantes como a resiliência quando corre menos bem, aprenderem que têm de trabalhar forçosamente em equipa e saber gerir conflitos, porque quando se tem de tomar uma decisão num grupo de cinco, dificilmente todos estarão contentes. E a gamificação ajuda.
Eles dão esse feedback?
Sim, eles interessam-se e vê-se isso, porque são aulas atípicas em que mesmo os alunos da noite que têm aulas das 20.00 às 23.00 não querem sair, a professora tem de dizer que está na hora de irem para casa. Há alunos que, no simulador de gestão, que é autónomo, chegam a fazer 40 ou 50 horas por semana. Eles percebem rapidamente a mais-valia de aprenderem assim, no seu tempo, onde querem, como querem e em ciclos curtos. Todas as semanas eles têm uma nota, sabem se ficaram em primeiro, segundo ou terceiro lugar. E é muito engraçado vê-los no dia em que sai a classificação, todos muito empolgados, a tentar perceber se subiram, onde falharam, se era o mercado ou produto adequado, os salários... Isto desmistifica muito aquela ideia de que o aluno típico é o que não quer saber de nada, que não quer aprender. Faz-nos ver que se calhar nós é que temos de perceber que ele aprende e desenvolve competências de uma forma diferente e parar de insistir em modelos que resultaram durante os últimos 50 anos, mas já não funcionam. E, portanto, também é preciso repensar a dimensão dos ciclos aprendizagens, quer em termos de duração total quer em termos da forma como estruturamos as aulas. Adaptarmo-nos a esta geração Z é de facto um desafio grande que temos.
Nem todos vamos chegar ao topo da carreira porque não há topo para todos, e os jovens têm alguma dificuldade em lidar com essa contrariedade, porque sempre ouviram que se cumprissem a sua parte teriam tudo.
E que também passa por uma postura diferente relativamente ao trabalho.
Sim. Por isso impõe-se também uma adaptação do ponto de vista das competências pessoais, que seja equilibrada ao ponto de eles conseguirem sobreviver no mercado de trabalho. Porque é uma geração que lida relativamente mal com contrariedades, uma geração a quem foi dito que todos podiam ser aquilo que quisessem, que todos iam ter o maior sucesso. Infelizmente isto não é verdade. Claro que nem todos podemos ser o que queremos, nem todos vamos chegar ao topo da carreira porque não há topo para todos, é uma pirâmide, e às vezes eles lidam mal com isso. Têm alguma dificuldade em lidar com essa contrariedade porque sempre ouviram que se cumprissem a sua parte teriam tudo. Estas disciplinas ajudam nisso, treinando-os em ambiente controlado a lidar com contrariedades, a desmotivar-se. Cabe-nos incentivá-los, explicar que se estão em último devem continuar a trabalhar e não há mal nenhum porque agora só podem subir, desde que se esforcem, que a "empresa" até esta a gerar um resultado positivo, simplesmente é menos positivo do que o de outros, ou seja que não há aqui nenhum estigma. Isto acelera-os muito no desenvolvimento das competências técnicas e não técnicas. E mesmo o papel do professor nestas disciplinas é distinto. Deixa de ser o professor como o conhecemos e é mais um facilitador, um consultor que anda pelos grupos e vai ajudando a que se entenda os resultados, como podem olhar outras perspetivas, pô-los a debater e depois voltar para analisar onde chegaram. Portanto é muito uma aprendizagem autónoma. E tem tido muito bons resultados.
Estes simuladores são um dos traços distintivos do ISCAL?
No país, existem outras escolas que têm projetos de simulação, em contabilidade, mas são todos distintos, porque cada escola lhes dá um cunho. Mas na Gestão, se não somos únicos pelo menos fomos pioneiros na implementação, que foi evoluindo com a necessidade de o adaptar a contextos novos, a novas características dos estudantes etc. E não só, porque nós oferecemos esta disciplina em língua inglesa, portanto, é a disciplina escolhida pela esmagadora maioria dos estudantes Erasmus, por exemplo, e todos eles a realçam no feedback que dão quer na avaliação quer depois quando vão para as instituições de origem. Porque conseguem perceber a mais-valia de ter este tipo de de abordagens.
Fazia sentido aplicar esse princípio da gamificação ao curso todo?
Fazia e eu acho que o caminho tem de ser por aí. Em áreas iminentemente técnicas, como a contabilidade, pode ser mais difícil, mas aí, por exemplo, o que se faz é que ao longo do curso eles vão tendo contacto com vários softwares e ferramentas para que exista uma componente muito prática. A gamificação é uma das estratégias que funcionam. Porque a gamificação bem alicerçada no desenvolvimento teórico e técnico é capaz de exponenciar brutalmente a componente teórica e mais científica, que obviamente tem de existir, senão nem funciona, não posso gamificar o que eles não sabem fazer. Mas a experiência que temos é que a gamificação tem sido deveras positiva e a ideia é tentar fazê-la crescer, o que implica que os professores olhem para o ensino de uma forma diferente e que os estudantes tenham compromisso também diferente, implica virem às aulas todas, porque têm controlo de assiduidade, de pontualidade, têm uma série de aspetos de natureza mais profissional. Mas no fim de tudo, eles são os primeiros a dizer que foi bom, valeu a pena, apesar de o esforço ter sido grande. A responsabilidade passa do lado do professor para o lado do estudante e tem um efeito positivo neles, faz que se comprometam mais . Portanto a aposta nesta gamificação tem sido uma aposta.