Qual é o seu segredo para continuar com a mesma energia?
Ter confiança nos seres humanos: sei que nem tudo está decidido e que juntos, os adultos e os jovens, podemos construir situações de bem comum. Ter projetos e amigos gera forças. E olhar o passado com alegria, sabendo que não é tempo perdido, mas sim tempo vivido, o que é outra coisa. Na verdade, ter vivido é um privilégio que nos prepara para o que vem a seguir.
Acha que as mulheres sofrem mais do que os homens no processo de envelhecimento?
Sofrem mais porque as circunstâncias económicas e sociais das mulheres são piores que as dos homens. A falta de respeito e de igualdade gera tragédias inadmissíveis em mulheres que envelhecem sozinhas, abandonadas, pobres, apesar de terem trabalhado toda a vida a cuidar do outro, dentro e fora de casa. Isto acontece em todo o mundo e continuará a acontecer até que se superem leis caducas e mentalidades insensíveis. Em qualquer caso, apesar desta condição, as mulheres encaram a vida com a mais humana aceitação. É verdade que tratamos bem de nós, vestimo-nos bem, maquilhamo-nos, mas isso é sinal de uma saudável sedução, não significa ansiedade quanto à beleza esquecida ou potencia a força perdida.
Segundo a ONU, a maioria dos países não protege as mulheres das consequências económicas e sociais da COVID-19. Qual é a sua opinião sobre este assunto?
Absolutamente de acordo com a ONU. E é dever das mulheres e dos homens reclamar aos estados, às empresas e aos criadores de opinião que se proteja as pessoas que cuidam na sociedade: quem se importa sofre mais riscos. É um dever de civilidade proteger as mulheres que cuidam.
Saramago morreu há 10 anos e a Pilar nunca se considerou sua “viúva”. Para os leitores ele nunca morreu e para si? Como é esta ausência?
Não é uma ausência. Trabalho e milito em José Saramago todos os días.
No campo afetivo é melhor não entrar, aqui cada um sabe de si. Mas é uma sorte ir vendo os seus livros em casas e livrarias, e poder dizer “olá” muitas vezes. Até no metro, quando vejo pessoas lendo um livro de José Saramago, saúdo com um “olá José” que ninguém percebe, mas é uma alegria profunda.
Quais foram as maiores dificuldades e as melhores recompensas durante estes anos na direção da Fundação Saramago?
Perceber que os esforços e o investimento que diariamente se fazem na Fundação não caem no vazio, que a Fundação está instalada no imaginário dos portugueses e, poderia dizer, em muitos lugares do mundo.
Somos vistos e respeitados como fiéis depositários de um legado literário e humanista e, também, como trabalhadores de projetos ambiciosos que vão além das nossas forças.
Honra-nos saber que escritores de outros países e instituições sociais e culturais contam connosco. Somos poucos, mas os nossos dias não têm horas livres, sabemos que estamos a construir algo que é para o bem comum.
A que aspira mais uma Fundação tão importante na nossa cultura e que representa o único Prémio Nobel da Literatura em Língua Portuguesa, ainda que Saramago seja um autor incontornável para além do Nobel?
Aspiramos a ser uma casa da cultura contemporânea, um lugar de encontro e discussão. A Fundação não trata só de José Saramago, como o próprio deixou claro na Declaração de Intenções, trabalhamos para ser um lugar de encontro de culturas e também de causas que procuram aprofundar a democracia e colaborar na erradicação de males que escravizam, como o racismo, a homofobia, a violência contra as mulheres, as desigualdades sociais, económicas, o patriarcado, o feminicídio. Em nenhum destes temas, ou outros, somos neutros, defendemos a vida de todas e de todos, daí a Declaração de Deveres impulsionada pela Fundação.
Se pudesse voltar ao passado, o que diria a Pilar do presente à Pilar adolescente (ou podia ser ao contrário - o que sonharia a Pilar de 20 anos)?
Sou uma mulher afortunada a quem os sonhos se cumprem. A pessoa de hoje diria à pessoa do passado que chegar aos 70 pode ser estimulante, e que não tenha medo de sonhar porque por vezes, como já disse, os sonhos realizam-se. A adolescente que fui poderia dizer-me, talvez, para abrandar o ritmo. Mas não importa, não prestaria atenção…
Que dom da natureza gostaria de possuir? Porquê?
Um dom da natureza, não, quereria um dom dos deuses: a ubiquidade. Quero estar em muitos lugares ao mesmo tempo, em muitos países e com muitas pessoas. E sem ter que apanhar aviões, que detesto…
2020 está a ser considerado como um ano de incertezas. Ainda temos a batalha contra a pandemia COVID-19 para travar. Na sua opinião, quais serão as questões mais urgentes para a humanidade nos próximos anos?
Emergência climática: ação consertada de todos os governos para evitar tragédias como esta pandemia, que tanto tem a ver com as agressões que infligimos ao planeta. Meio ambiente, Saúde e Educação: estas são as minhas prioridades, estão na Declaração de Deveres Humanos que a Fundação impulsiona.
Este Natal, os seus pensamentos vão estar com...
Mais que em pensamentos pretendo estar presente neste Natal em sentimentos.
Quero sentir-me perto das pessoas de quem gosto: ainda que não possamos estar juntos, vamos inventar formas de partilha e transmitir a profundidade do afeto, da empatia e até do amor.
Podemos fazê-lo se essa é a nossa vontade. ¿Não voou a passarola com as vontades recolhidas por Blimunda?* Ponhamos mãos à obra para fazer outros prodígios neste estranho Natal.
*Blimunda Sete-Luas - personagem de Memorial do Convento (1982) de José Saramago, capaz de ver por dentro as vontades dos outros, que possui o dom da clarividência. Num tempo dominado pela aparência, o Portugal barroco, o amor que a une a Baltasar Sete-Sóis é um dos eixos temáticos de O Memorial do Convento.