1. Perdões famosos

Até ao perdão de dia 6 de dezembro de 2024, quando o Presidente Joe Biden anunciou a decisão de expressamente conceder clemência ao seu filho para “quaisquer potenciais crimes federais que Hunter Biden possa ter cometido entre 1 de janeiro de 2014 e 1 de dezembro de 2024”, só havia um perdão presidencial verdadeiramente importante no imaginário norte-americano e mundial: o do Presidente Gerald Ford ao seu antecessor, o ex-Presidente Richard Nixon, a 8 de setembro de 1974.

Numa emissão televisiva dirigida aos EUA, Ford tentou explicar que considerava que o perdão era do interesse do União e que a situação da família Nixon era “uma tragédia em que todos nós desempenhámos um papel (…) poderia continuar e continuar e continuar, ou alguém teria de escrever o fim dessa história. Concluí que só eu o posso fazer e, se posso, devo fazê-lo”.

Cinquenta anos depois, após sucessivas promessas de que não iria perdoar o filho, ao longo do seu mandato, antes e depois de se intensificar a campanha presidencial de 2024, Joe Biden negou a sua promessa afirmando que o filho Hunter foi “seletiva e injustamente processado” num “esforço instigado pelos seus adversários políticos” (note-se que este é exatamente o tipo de argumento usado pelas equipas de Trump para desvalorizar os processos movidos contra si e seus apoiantes desde 2021).

Uma semana depois, o mesmo Joe Biden bateu um recorde histórico, perdoando, num único dia, mais de 1.500 condenados, abrangendo os libertados da prisão e colocados em confinamento domiciliário durante a pandemia do COVID-19 e ainda 39 americanos condenados por crimes não violentos. Foi o “maior ato de clemência realizado num só dia na história moderna”, superando um dos últimos dias da presidência Obama, que “apenas” incluiu 330 perdoados. O Presidente Biden já disse que vai rever outros pedidos de clemência, com uma afirmação forte: “a América foi construída com base na promessa de possibilidades e segundas oportunidades (…) como presidente, tenho o grande privilégio de estender a misericórdia a pessoas que demonstraram remorso e reabilitação, restaurando a oportunidade de os americanos participarem na vida quotidiana e contribuírem para as suas comunidades, e tomando medidas para eliminar as disparidades de sentenças para infratores não violentos, especialmente aqueles condenados por crimes de drogas”. Esta declaração da Casa Branca tenta atenuar o polémico perdão.

2. Perdões determinantes

Curiosamente, há um outro perdão relevante relacionado com o outro polémico caso Watergate, que fez cair Nixon, mas foi concedido pelo Presidente Carter, democrata: G. Gordon Liddy, um dos principais advogados dos republicanos, viu a sua pena reduzida, com fundamentos semelhantes aos invocados por Ford, numa curiosa (e verdadeira) pacificação presidencial. Esse, menos conhecido, deveria, ao menos relativamente, ser mais louvado. No entanto, muitos historiadores dizem que foi o perdão de Ford que acabou com a presidência do republicano, condenando a sua eleição ao fracasso: internamente foi desafiado por Ronald Reagan, numas primárias difíceis, e, externamente, perdeu na única das eleições verdadeiramente renhidas daquelas décadas. Ford era popular, moderado, e poderia ter sido responsável por uns EUA muito diferentes daqueles que conhecemos nas últimas décadas: menos extremados, talvez até com um modelo social semelhante ao europeu, com alguns defensores na sua administração e muitos nomeados across the aisle (“do outro lado”, democratas ou liberais com que colaborava no Congresso).

Recorde-se que vivíamos tempos pendulares, depois de Lyndon B. Johnson ter virado o partido democrata à esquerda e mudado a lógica do jogo vencendo em 44 de 50 estados, em 1964, seguiu-se Nixon com 32 estados, em 1968, e, depois de, com a NASA a chegar à lua em 1969, venceu 49 dos 50 estados, em 1972. Ford e Carter quase empataram (Gerald teve 27 estados, mas perdeu no colégio eleitoral também, por muito pouco, no voto popular, contra um surpreendente Jimmy). Reagan venceria 44 estados, em 1980, e 49 estados, em 1984. Mesmo H. Bush venceria 40 estados em 1988 e Bill Clinton conseguiria 32 e 31, em 1992 e 96, só para ter noção do “caso isolado” que foram o empate e a (não) eleição de Ford em 76.

Quando se estuda perdões presidenciais, normalmente estudam-se os “blocos” (e, mesmo quanto a Joe Biden, era o que estava a ser feito). No mandato de Andrew Johnson (1865/1869) foram perdoados milhares de ex-Confederados, em nome da paz na União. Jimmy Carter (1977/1981) foi responsável pelo indulto de mais de 200.000 pessoas identificadas como “fugitivas ao recrutamento” para a guerra do Vietname. E, por fim, Biden já tinha perdoado 6.500 pessoas condenadas pela mera posse de marijuana.

3. Perdões e despedidas

Conta-se que, depois de Ford ter deixado a Casa Branca, em 1977, justificou, em privado, o seu perdão a Nixon, levando no bolso um excerto da decisão de Burdick v. United States (1915), do Supremo Tribunal dos EUA, que afirma que um perdão implica uma imputação de culpa e que a aceitação implica uma confissão de culpa. Será que, ao aceitar este perdão, Hunter Biden – a família Biden e o partido democrata atual – estão, também eles, a aceitar um tipo de culpa como a que Nixon aceitou, ao rebaixar-se perante o perdão presidencial, que tentou arrefecer aqueles tempos conturbados da política americana?

Nos últimos dias, a maioria tem surgido em sentido crítico, mesmo dentro do partido democrata, ainda muito ferido pela derrota em novembro, e em todas as frentes: na presidência, na Câmara dos Representantes, no Senado e na maioria de Governadores de estados: ainda são muitos os que imputam a Biden o facto de esta campanha ter começado condenada ao fracasso, por não ter sabido sair.

A História dos EUA começa exatamente com um Presidente, George Washington, que surpreendeu o mundo ao sair. Cumpriu dois mandatos e começou a preparar um discurso de despedida, com Alexander Hamilton (já atualizado para um rap-musical moderno, através da famosa música One Last Time, que até já tem uma versão cantada pelo ex-Presidente Obama!). Nessa época, para quem tinha o poder e reunia os consensos do General da Virginia, o natural era permanecer no poder muito mais anos, até mesmo ao final da sua vida (há vários cargos vitalícios, desde logo na magistratura). Na Europa, para os líderes franceses ou ingleses foi uma surpresa ver G. Washington abandonar o poder, mas ficou ali a semente.

No entanto, esta auto-limitação de mandatos, mesmo nos EUA, só foi consagrada na Constituição através da 22.ª Emenda que entrou totalmente em vigor apenas em 1951, cerca de 150 anos depois do discurso do 1.º Presidente dos EUA, que começava com uma bonita admissão de falibilidade: “Embora, ao rever os incidentes da minha administração, não tenha consciência de erros intencionais, sou, no entanto, demasiado sensível aos meus defeitos para não pensar que é provável que tenha cometido muitos erros”.

Nesse discurso, o General alertou contra três perigos inter-relacionados que, apesar de terem mais de dois séculos no papel, parecem dirigidos aos cidadãos de hoje. Para Washington (e Hamilton) aquilo que mais ameaçava destruir a União era o regionalismo, o partidarismo e a permissão de envolvimentos estrangeiros nos nossos países. Os seus imediatos sucessores, os pais fundadores John Adams e Thomas Jefferson, começaram logo a testar os limites da União, seja pela relevância que quiseram dar às regiões a que pertenciam – Jefferson, mais a sul e mais pro-escravatura, por exemplo – , seja pelo partidarismo – Adams nomeou dezenas de juízes para perpetuar a sua influência (até aos 40 midnight-judges que viriam a dar origem ao caso que permitiu ao Supremo Tribunal dos EUA ganhar poderes de fiscalização da constitucionalidade e maior centralismo na América), seja enfim pela relação com o estrangeiro que, entre mais intervencionismo ou isolacionismo, ainda hoje não está pacificada (como tão bem sabemos).

4. Perdões imperdoáveis?

As últimas semanas de Joe Biden recordam todos estes tempos: foi um presidente que não “soube sair” e, depois de algumas conquistas numa longa carreira política, que o poderiam equiparar ao velho FDR (Franklin Delano Roosevelt), não morreu em funções como aquele, mas quase, e deixou muitos a pensar, como no final da administração Reagan, sobre quem manda(va) de facto na Casa Branca; foi um presidente que também aproveitou para fazer várias nomeações judiciais de última hora (apesar de tudo, os democratas ainda têm a maioria no Senado e os republicanos distraíram-se em algumas atividades pós-eleitorais, permitindo à “equipa Biden” mais nomeações do que se esperaria), o que poderá dar algum equilíbrio judicial com que não se esperava; mas foi um presidente que intensificou a guerra e acicatou conflitos e relações e envolvimentos estrangeiros que podem ser um presente envenenado não apenas ao próximo presidente dos EUA, mas ao mundo inteiro, em especial nas semanas mais recentes.

E regressamos ao perdão do filho. Citei o argumento dado pelo Presidente Biden – o de que os processos foram e estavam a ser instigados por adversários políticos –, mas não referi o que muitos disseram: é um ato inaceitável como presidente, mas compreensível como pai.

Não deixa de ser pouco, muito pouco, e triste. A carreira e a vida de Biden são de triunfo no meio da tristeza: ficou viúvo cedo, perdendo a mulher e a filha num acidente de carro e ficando com dois filhos pequenos para criar. Tentou reconstruir a vida, teve uma nova filha (que teve uma colega de quarto, na universidade, a roubar o seu diário, para retirar informações sobre a velhice do pai). O filho mais velho, militar, advogado brilhante, Beau Biden, morreu com um cancro no cérebro, menos de um ano antes do final da vice-presidência do pai, em 2015. A tragédia abalou toda a família, incluindo Hunter que, infelizmente, à época, já era lobista na Burisma Holdings, desde 2014, uma empresa envolvida, entre outros casos graves, em escândalos de branqueamento de capitais, detida por um oligarca ucraniano...

Deixo este contexto como “pano-de-fundo”, sem me pronunciar mais, quase com um silêncio perante a história de uma família destruída, como Gerald Ford tentou fazer perante a família Nixon, há 50 anos.

Odeio ouvir dizer que “os políticos são todos iguais”. Biden não é e não foi igual a Trump: no seu percurso político, nas suas ideias, nas suas gaffes, nas suas vitórias e derrotas, no espetáculo que soube e não soube dar, na forma como sai… Mas Biden é mais do que isto, tal como Geral Ford e Richard Nixon foram mais do que o perdão que os marcou. Foi um grande homem do Congresso e de “pontes”. Os três têm, aliás, em comum isso mesmo: são ex-presidentes que a História e o tempo deverão perdoar.

5. Perdões e maldições?

Apesar de ter crescido a ler o Harry Potter, também não acredito em maldições ou perdões imperdoáveis… Um bom exemplo foi dado por um dos rivais de Ford e Nixon, o Senador Ted Kennedy que inicialmente se opôs veementemente ao perdão, mas, mais tarde, veio afirmar que a História tinha provado que Ford tinha tomado a decisão correta. Em maio de 2001, a Fundação associada à Biblioteca John F. Kennedy atribuiu o prémio John F. Kennedy Profile in Courage Award a Gerald Ford pelo seu perdão a Nixon.

Ford morreu com os principais rivais a virem ter consigo, elogiando aquele perdão… é ou não bonito?

A verdade é que o perdão saiu muito caro ao partido republicano: os democratas recuperaram a presidência em 1976, contra o que se esperava, especialmente depois de uma vitória tão expressiva em 1972, conseguiram uma supermaioria no Senado, acima dos 61 senadores, logo em 1974, que se manteve ao longo do mandato de Carter e deixou resquícios que ainda afetariam a presidência Reagan (que teve maioria no Senado apenas durante parte dos seus mandatos). No entanto, a Câmara dos Representantes que já era controlada pelos democratas, saiu reforçadíssima e, durante vinte anos (até uma nova presidência “azul”, de Bill Clinton), teve uma maioria esmagadora de congressistas democratas, a controlar presidentes e atos legislativos de quaisquer presidentes, republicanos ou não. Só em 1994 “virou”. Daí se dizer, hoje, que Trump tem o que nenhum outro republicano teve, nem Nixon, nem Reagan, apesar das suas mega-vitórias eleitorais.

Não sabemos ainda as repercussões que os atos das últimas semanas, das fronteiras da Ucrânia às florestas da Amazónia, dos teclados do TikTok até ao perdão do seu filho e às acusações de “perda de moralidade”, acrescentadas a um enfraquecimento do partido democrata depois de um annus horribilis que começou com um presidente que não soube dizer adeus. São muitos perdõezinhos que precisamos de dar ao Presidente dos EUA antes de o mesmo levantar voo no Marine One, forma tradicional como se despedem os presidentes americanos. No entanto, para o bem do equilíbrio da política americana e do mundo, esperemos que perdoar não tenha sido imperdoável e que a América continue ou volte a ser, como Biden dizia a 12 de dezembro (ainda que o seu sistema jurídico-penal não reflita isso, mas isso já são reflexões para outros textos), a terra da promessa de possibilidades e segundas oportunidades.

São os meus votos para este Natal e para o novo ano: que todos sintam perdões inesperados, tenham novas possibilidades e segundas oportunidades, nas suas terras e fora delas.