
Acabou de chegar de mais uma corrida à beira-mar, ainda meio incrédulo com o clima espanhol. Na Ucrânia, no meio do inverno, Artem era, de todo o grupo de tradutores, jornalistas e motoristas, o que mais se queixava do clima.
Cerca de três meses depois de ter sido um dos tradutores do Expresso, em fevereiro de 2023, escreveu-nos a dizer que se tinha oferecido para a posição de operador de drones numa unidade no sul do país, perto de Zaporíjia, onde se preparava a grande ofensiva de primavera. “Alistei-me no exército porque queria libertar a minha terra, a Crimeia, e era esse o plano das tropas a sul, mas acho que não demorei nem dez minutos, depois de chegar ao terreno, a perceber que nunca iria acontecer”.
Tinha 27 anos, agora está a dias dos 29. Tinha vida confortável como designer de software para uma empresa indiana com mercado no leste da Europa, mas, ao mesmo tempo, um fervor patriótico agigantado por ter nascido na Crimeia, anexada ilegalmente pela Rússia em 2014. Teve de fugir com o irmão para continuar a ser livre, mas os pais não sentiram a mesma necessidade. Artem consulta com regularidade e estupefação as redes sociais da mãe, aparentemente fervorosa patriota russa.
A família não sabe que Artem e o irmão são fervorosos patriotas ucranianos, ambos entraram voluntariamente para o exército. “A minha família não sabe que matei russos com drones, quero contar-lhes tudo pessoalmente, mas tenho medo dessa conversa. Se o que a minha mãe escreve na internet é mesmo o que pensa disto tudo, enfim, não antecipo nada de bom”, afirma Artem ao telefone, de um hostel na costa espanhola, onde chegou a 12 de janeiro, após uma viagem que o levou a visitar muitos outros amigos, desertores como ele.
Vive no prédio de uma ONG espanhola, partilha o quarto com requerentes de asilo de várias nacionalidades, coisa que muito prefere à privacidade que tinha na Alemanha, primeiro país onde tentou estabelecer-se. “Aqui as coisas não estão brilhantes, durmo numa camarata com seis pessoas, mas antes isto do que a Alemanha, onde era tudo desinfetado, mas parecia um hospital psiquiátrico, com polícias à porta e proibição de falar depois das 22h”. As autorizações de residência e trabalho na Alemanha demoraram muito mais do que em Espanha, garante Artem, que chegou a conhecer que estivesse alojado em regime de habitação partilhada há mais de um ano, ainda sem autorização para trabalhar.
“À espera de um feixe de luz”
Neste momento trabalha numa empresa de software de um ucraniano, domiciliada na Estónia. No fim do mês espera conseguir alugar um quarto. E pensar que há um ano Artem estava na linha da frente, descrente e esperançoso ao mesmo tempo, a tentar entender o que ainda o prendia ali.
Quando veio da Alemanha, no fim de julho de 2023, depois de ter completado o treino de operador de drone, já sabia que a contraofensiva não ia resultar. Foi ficando “à espera que alguma coisa mudasse na atitude das chefias” e confidencia: “Sempre soube que me iria embora, mas fui adiando, à espera de um feixe de luz, não sei”.
Nos primeiros dias na linha da frente, apercebeu-se, através do ecrã que recebe as transmissões das câmaras acopladas aos drones, de que as equipas de assalto estavam a ser enviadas “para capturar linhas de árvores, 100 ou 200 metros, e nem sabiam onde estavam, para onde se dirigir, por isso estavam muito vulneráveis a ataques russos”. Certa vez, depois de um primeiro grupo de assalto ter falhado, “os comandantes enviaram imediatamente o segundo grupo, em plena luz do dia”.
À pergunta que lhe fazem sempre que diz o que fez — “Porque desertaste?” —, a Artem basta como resposta percorrer o catálogo de polaroides surrealistas que arquivou na memória. “Há um episódio marcante, que hoje é praticamente uma lenda do exército”, começa a contar. “Um dia chegou lá à nossa base um veículo telecomandado, como aqueles das crianças, mas em tamanho real. Tinha sido pago por um grupo de voluntários, e foram um dia lá levá-lo à nossa unidade. Podia servir para colocar minas perto das linhas inimigas, reabastecer a frente, ou até como veículo kamikaze, uma vez que não era tripulado.”
Artem pausa, ri para si, suspira e retoma. “Bom, a construção e os materiais não eram de todo os melhores, coisas baratas, então o carro ficava encravado em cada buraco na estrada, e a estrada é só buracos de morteiros. Além disso, a ligação era má, ou seja, era um exagero chamar àquilo ‘telecomandado’. Manobrávamos o carro através de um drone que o sobrevoava, e era o drone que o comandava, mas mesmo assim nunca conseguimos controlá-lo bem.”
O comandante, no entanto, prometera gravar um vídeo com o carro a funcionar na perfeição, a cumprir a sua função, para que o grupo que o doou pudesse mostrar nas redes sociais para onde tinham sido encaminhados os donativos das pessoas. “Ora, um belo dia, o carro empancou mesmo, a dois ou três quilómetros do inimigo, estava preso, conexão perdida. O comandante mandou cinco homens correr até ao carro, empurrar, retirá-lo do buraco e continuar a filmar a missão, só que o carro voltou a parar, mas mais longe, a cinco quilómetros da base, bem perto dos russos. Foi um desespero, não se mexia, ficaram a noite toda ali expostos, só de manhã é que o comandante mandou uma carrinha buscar o pessoal. E pronto, cinco pessoas arriscaram as vidas porque os comandantes prometeram a alguém um vídeo e era uma pena dizer que não funcionava.”
Crime punível com 12 anos de cadeia
É difícil não rir com Artem, parece a guerra de Raul Solnado. Albert não atravessa a sua própria história com a leveza de Artem, que fala com frequência do clima maravilhoso da sua nova cidade e mete palavras em espanhol no meio da conversa, absorvido pela segunda vida que a sua controversa escolha lhe trouxe.
Desertar é crime punível com um máximo de 12 anos de prisão. Também Albert tem dezenas de histórias que podiam fazer parte dos livros de comédia negra que serão escritos sobre esta guerra, mas o rancor ainda não se dissipou, até porque sabe que pode ser apanhado e reenviado para a frente, ou cumprir pena, da qual muito dificilmente se conseguiria safar, agora que existe uma nova lei que permite aos desertores regressarem à frente sem penalização ou cadastro.
“Vi amigos de infância a correr para a morte, em direção a sítios onde toda a gente sabia que não iríamos aguentar, porque não tínhamos cobertura adequada contra drones. Nesses momentos os comandantes diziam coisas como ‘que a sorte esteja connosco e que tudo corra bem’”, conta ao Expresso. Outra vez, já quando passara da infantaria para a brigada de operadores de drones, dirigiu-se à base, numa noite sem sono, para perguntar se era preciso alguma coisa. “Chego lá e está o chefe de turno a jogar computador em vez de estar a vigiar os drones.”
Na trincheira de Artem, os meses passavam e nada mudava. As notícias de companheiros mortos eram quase diárias. Pouco antes da rotação de turnos, um rapaz de 22 anos fez explodir, sem querer, a carga de um drone suicida que tinha na mão para lançar no ar. “Esse miúdo era meu estagiário, eu era responsável por ele. Ouvi a explosão, saí da sala de controlo e ele estava ali deitado com um buraco de des centímetros no peito. Ainda fiz um torniquete na mão, só para ele perceber que alguém estava ali ao pé dele, mas morreu em segundos.”
Artem diz que sabe que o rapaz morreu por não ter seguido as instruções, mas mesmo assim sente que foi responsável, a par com as outras chefias. “Devia ter controlado o que ele estava a fazer, mas estava a responder à trigésima mensagem dos comandantes, que continuamente nos perguntam, a cada 30 segundos, coisas ridículas como ‘porque é que o drone ainda não está no ar?’, ‘o que é que estão a fazer, estão a perder tempo com quê?’ e coisas assim.”
Plano de fuga gorado
“Sinto-me culpado, há uma grande parte de mim ocupada com essa culpa neste preciso momento, mas não sou só eu. Na altura, pensei: ‘vou ser eu a seguir, ou então vou falhar de novo com alguém”, diz o programador de 28 anos. A concentração, esfarelada pela ansiedade, pela culpa, pela falta de sono, dividia-se entre o seu trabalho e o plano de fuga.
Seria nas férias, pensou, mas entretanto todas as férias e licenças foram canceladas. Aquele grupo, informaram os comandantes, seria redistribuído por posições perto de Pokrovsk, na província de Donetsk, pelo que tinham de ficar todos ali perto, só tinham autorização para descansar na aldeia mais próxima, sem poder ir a casa. Foi mais ou menos por esta altura que a Ucrânia decidiu invadir Kursk. Algumas das tropas que estavam no Donbas juntaram-se a esse plano, deixando as posições a leste desguarnecidas.
Artem nunca quis lutar no Donbas. Antes de se alistar, visitara amigos nessas linhas da frente, incluindo um colega de faculdade, Yar, que morreu perto de Bakhmut, numa missão que Artem descreve como “insana”, ainda que não saiba qual foi. Yar deixou cartas à família e aos amigos antes de partir, não é hábito que os soldados mantenham para cada missão.
Os pais nem sabiam que ele estava na guerra, que fora para o leste de forma voluntária. Receberam a carta a confirmar a sua morte em combate. É impossível imaginar a devastação sentida por uma família que julgava o filho seguro, em Kiev, a completar um doutoramento. “Sempre achei a guerra no Donbas inútil, não vejo razão. Além disso, é muito mais difícil desertar de lá, as estradas estão cheias de checkpoints, e a minha base provavelmente estaria a centenas de quilómetros da cidade mais próxima. No sul não, estávamos perto de Zaporíjia. Foi aí que soube que era a minha última oportunidade”.
Até 200 mil desertores
O número de soldados que fugiram das suas unidades é segredo de Estado. Há um número público, e diz muito: mais de 100 mil enfrentam acusações de deseerção, segundo o Ministério Público da Ucrânia, citado pela Associated Press.
Estes são só os que foram apanhados. O número real de deserções é provavelmente muito maior, perto dos 200 mil soldados, segundo um advogado com conhecimento do caso que falou para essa mesma investigação da agência de notícias americana.
Um comandante de uma força posicionada perto de Kramatorsk, na província do Donbas, disse ao Expresso, sob anonimato, que é cada vez mais difícil planear uma estratégia porque “muitos dos que chegam desaparecem”. Isto acontece, por exemplo, quando são enviados para tratamento de ferimentos. “O problema é que muitos fogem antes de um assalto, e até durante, o que deixa todo o destacamento em perigo, e isso é uma coisa muito pouco decente”.
Outros oficiais que falaram com o jornal “The Guardian” e a Associated Press atribuem a perda da cidade de Vuhledar, no sul do país, a este tipo de comportamento. “Deveria haver 120 homens em cada uma das companhias do batalhão, mas as fileiras de algumas caíram para dez devido a mortes, ferimentos e deserções”, disse. “Cerca de 20% dos soldados desaparecidos dessas companhias tinham desertado. Foram enviados reforços para a zona, mas muitos homens fizeram o mesmo, foram-se embora. Quando um dos batalhões da 72ª Brigada se retirou, os seus membros foram abatidos a tiro, porque não sabiam que ninguém os estava a cobrir”, explicou um dos comandantes desta brigada à agência.
Culpa? Mais ou menos
O trabalho das unidades, explica Artem, é organizado por turnos, há-os de cinco dias, duas semanas, doze dias, depende. “O tempo de descanso é passado numa aldeia perto da linha da frente, mas suficientemente afastada para que possamos tentar abstrair-nos. Na aldeia onde ficávamos não há civis, ocupávamos temporariamente as caves e as garagens das pessoas. Nestes dias estamos por nossa conta, não temos chefias próximas, podemos usar transporte privado ou transporte coletivo, normalmente organizado por voluntários que nos vêm buscar, vamos comprar coisas à cidade, passear um bocado, é relativamente fácil movimentarmo-nos”.
Ele e outro amigo que também queria fugir pagaram a quem os viesse buscar e chegaram a Zaporíjia, de onde Artem partiu para Kiev, num autocarro civil normal. Não teve medo, porque as mentiras funcionam bem num país onde o exército está “mal organizado”. Na única paragem entre Zaporíjia e Kiev, os militares perguntaram-lhe porque estava a deixar o posto e ele disse que o comandante lhe dera licença por motivos pessoais. “Normalmente há um papel que prova que temos autorização para ir a casa, mas é quase impossível consegui-lo a tempo, tem de passar pelas altas chefias; então, os comandantes davam-nos dias informais. Quando expliquei, os tipos no checkpoint acreditaram.”
Em Kiev passou um mês. Tentou explicar à namorada que tinham de partir, ela não quis, e não foi capaz de falar abertamente sobre o assunto, só depois de já terem acabado, e mesmo assim não se permite mais do que aflorar o assunto. O próprio Artem admite que ainda está em negação. Em Kiev não há muita polícia militar, mas mesmo que o apanhassem, tinha identificação militar, estava no exército, tinha vindo a casa uns dias, seria a história que contaria, mais uma vez. De qualquer forma, em Kiev não lhe seria possível voltar a trabalhar. Ninguém dá contrato a um homem inscrito no exército e com tempo de serviço por cumprir. É proibido.
Não era só não poder trabalhar. Queria sair do ambiente de guerra que se alastra a todas as áreas da vida, fugir física e mentalmente desse nevoeiro carregado, essa campânula de culpa, desgosto, perda, incerteza que molda os dias de tantos ucranianos. “Queria mudar o foco, sabes, sentir que há algo nesta vida exceto esta guerra e que somos comandados por pessoas que não querem saber dos seus soldados, queria sentir que o meu tempo neste mundo não acabaria ali, porque tenho muitas coisas para fazer, para viver”. E não sente, nunca, que está a falhar ao país, aos companheiros que ficaram na linha da frente? “Sim, claro que sinto, mas nada podemos fazer. Então estamos a perder as melhores pessoas, não só no exército, mas todos os que fugiram, pessoas ativas, empreendedoras, e que estão a recomeçar as vidas, a criar negócios noutros países, onde os filhos vão crescer. Não vão voltar para a Ucrânia no futuro observável.”
Albert também não se sente culpado, ou pelo menos diz que pouco se importa com o que digam dele. “Para alguém entender o que vivi, teriam de ter estado lá. Os meus amigos, as pessoas com as quais servi, todos entendem. Não me importo muito com as opiniões de fora, porque, lá está, ninguém pode julgar o que vivi. Há pior, decerto, mas eu podia ter morrido várias vezes, como importar-me com o que outras pessoas pensam?”.
Tem 33 anos e juntou-se ao exército, com Artem e tantos outros, com o sonho de participar na contraofensiva. Hoje nem sabe dizer se isso algum dia foi objetivo sério do exército ou apenas manobra de propaganda para atrair voluntários. “Houve uma grande campanha publicitária, a primeira grande tentativa de recrutamento, e pelo menos, sabíamos qual o objetivo da nossa equipa, era claro o sentido no qual nos deslocaríamos: para sul. Agora isso não existe, as brigadas e as unidades estão constantemente a ser redistribuídas para diferentes direções e povoações”, lamenta.
Durante essa campanha para angariar militares, “prometeram-nos comandantes experientes e voluntários motivados, mas recebemos sobretudo pessoas na casa dos 40 anos mobilizadas à força”, queixa comum entre os desertores que falam com a imprensa. “Na altura da contraofensiva, eu achava mesmo que tinha de ir lutar, queria ir, levar a minha força e motivação de recém-chegado, dar descanso e férias aos que estavam há mais tempo. Não tinha medo, desconhecia o que era o combate e acreditava na união de todos, que os meus superiores me protegeriam sempre.” Albert diz que tem problemas de saúde que poderiam isentá-lo da linha da frente, escolheu não comunicar esse problema à comissão médica quando se ofereceu, porque sabe que é ali que falta gente.
Pensa regressar ao exército, se o apanharem não se negará a ir, antes isso do que cinco a dez anos preso, mas não voltará para a mesma brigada: “Preferia ir para a prisão”. E há cada vez mais homens a fazer o mesmo, vai sabendo pelos grupos de soldados e ex-soldados: um que foi viver para a montanha, outro que saiu do país, outro que está de regresso à casa de família e agora está lá fechado.
Albert não se sente muito preso. Como repete várias vezes, não se negará a regressar caso lho seja exigido em troca da liberdade, mas recebe em casa toda a sua comida, seja já cozinhada, seja do supermercado. “Há muita gente a sair, e é por estarem desiludidos, ou mesmo chocados, com o nível de estupidez das chefias. Os comandantes perseguem os seus objetivos, nós somos um recurso, uma ferramenta para conseguirem subir nas carreiras, ou assim, não sei. Mas ninguém é responsável pelas pessoas que morreram sem sentido.”
O “estilo soviético”
Ambos os ex-soldados falam de um certo estilo soviético e antiquado de liderança. Albert compara os comandantes a “senhores da guerra na sua coutada”. Diz que “não passam de senhores feudais que controlam a vida dos seus camponeses, nós”. Artem concorda. “A minha brigada era gerida com mentalidade estratificada, nesse sentido é um espelho da nossa sociedade como um todo: as pessoas com poder só se preocupam em agradar a pessoas com mais poder e tentam fazer tudo para não serem mal vistos por quem está ainda mais acima.”
Há uma explicação histórico-sociológica para isso, diz Artem. “Nos últimos 100 anos, esta parte da Europa de Leste, onde estão a Ucrânia e a Bielorrússia, tem sido um território de violência extrema. É nessa base que somos criados, é preciso sobreviver, é a preocupação número um. Confiar nos outros, comunicar com os outros, ser aberto em relação às nossas ideias, a forma reverencial com que tratamos os que têm poder e podem proteger-nos ou matar-nos…”
Nem Albert nem Artem acreditam na recuperação de territórios, aliás é esta a visão que prevalece entre os soldados que o Expresso tem entrevistado nos últimos seis meses. “Não podemos salvar muito, a fase atual da guerra já foi perdida, mas podemos pensar no futuro, o que vai acontecer com o nosso país, com a nossa sociedade nos próximos anos e tentar fazer algo melhor”, diz Artem.
“Os ucranianos não querem aceitar a realidade. Um dos problemas disto é que queremos que outros países façam o trabalho por nós, os países europeus, os Estados Unidos. O nosso país, os políticos, o exército e os cidadãos não estão a dar o seu melhor. Todos querem atingir o máximo de objetivos com o mínimo de esforço. Não foram adotados sistemas adequados de recrutamento, apoio e formação. O exército não fez mudanças e reformas”, completa Alberta. “A consequência é que são os segmentos mais vulneráveis da população, homens de meia-idade, da classe trabalhadora, que foram mobilizados à força, que estão a pagar o preço. Morrem, são feridos, desaparecem, são capturados”, reforça Albert.
Por isso diz que “neste estado de coisas, o país não é capaz de recuperar os territórios perdidos e, na minha opinião, o importante é não perder ainda mais. Se as pessoas não compreendem isto, o problema é delas”. Artem reconhece que abandonar território é “horrível” como opção, até porque muita gente morreu a tentar recuperá-lo, mas defende: “Devemos trabalhar todos, como todos os políticos, todos os países que se envolveram nisto, para conseguir que o cessar-fogo seja estável”.
Pacote “Premium” para desertores
A fuga de Albert foi mais rápida. Foi ferido em fevereiro de 2024, mais ou menos um ano após ter ingressado, e não voltou para a sua unidade, é o que se chama “desmobilização involuntária”, ainda assim punível com prisão. “Fui ferido e, quando o tratamento terminou, disseram-me para viver num local onde estavam outros soldados em descanso. Esse local fora bombardeado antes e mesmo assim continuávamos a ser mandados para lá. Escapei poucas horas depois de lá chegar, e fiz o regresso para casa ainda ferido, não houve problema, nenhum checkpoint. Hoje seria muito mais difícil, a circulação é muito limitada, mesmo na cidade”.
O estado psicológico de um soldado é de “exaustão máxima”, e piora quando não conseguem manter linha de contacto com os comandantes. “Não conseguimos fazer com que ouçam, é inacreditável como toda a gente está só a imitar ordens que já correram mal, muito mal, não só porque morreu gente como porque não se conquistou nada, não se destruiu armamento inimigo.” A saúde débil da mãe e não haver muita gente na família perto para tratar dela a tempo inteiro é uma das razões que o fazem evitar perigos desnecessários na rua.
Após um mês em Kiev a preparar tudo, Artem apanha um comboio para Vinnitsa, cidade ucraniana mais perto da Moldova. “Bom, isto tudo é organizado por espécie de quadrilha, não sei quantas há, mas deve haver muitas. Não faço ideia de quem sejam, mas suponho que tenham algum tipo de experiência e conhecimentos no exército e na polícia que patrulha as fronteiras”. É tudo cronometrado, secreto e eficiente. Artem suspira e diz que seria bom o exército ter metade do profissionalismo.
O primeiro contacto foi com um homem que reside nos Estados Unidos, que lhe indicou o valor para pagar, em criptomoeda. Logo depois de a transferência ter chegado ao destino, começou o jogo de códigos. “Recebi no WhatsApp uma palavra-passe e contacto da próxima pessoa que deveria contactar e a quem dei esse código. Essa pessoa dá-me uma morada, ainda na Ucrânia, onde me encontro com uma terceira que me leva para uma garagem perto da fronteira. Fiquei talvez sete horas e, depois, deram-me outro número, de uma pessoa que deveria levar-me até ao rio, a fronteira. Lá, outras duas pessoas guiaram a lancha até à margem oeste, que já é território da Moldova. E até aí havia um carro à minha espera. Devo ter contactado talvez oito pessoas no total.”
Os outros rapazes no barco e na garagem estavam nervosos, mas não tinham passado pela guerra nem tinham o “pacote de deserção Premium”, expressão do próprio Artem. “O que paguei até me deu acesso a um carimbo de entrada na Moldova que não tinha forma de obter legalmente, uma vez que cheguei de barco a uma zona que não é posto oficial. Levaram o meu passaporte, puseram o carimbo de entrada sem problema, para eu conseguir sair depois, seria estranho sair sem ter entrado.” Diz não ter visto dinheiro a trocar de mãos, mas não tem dúvidas de que os 12 mil dólares que pagou terão circulado pelas mãos de facilitadores, incluindo entre as autoridades de fronteira do seu país.
O Expresso contactou um porta-voz do Ministério da Defesa e enviou perguntas para os emails disponibilizados para jornalistas na página das Forças Armadas, mas não conseguimos obter esclarecimentos sobre as acusações que estes dois ex-soldados fazem aos comandantes nem sobre que medidas, se algumas, estão a ser tomadas para tornar o tempo de serviço um pouco mais tolerável.