
Depois de começar a publicar a série de livros de banda desenhada “Digital Lizards of Doom”, que vai agora para o quarto volume, o autor Gabriel Valentin recebeu um número crescente de mensagens de ódio nas suas rede sociais. Diziam-lhe que pessoas que cor não podiam escrever ficção científica, que os seus livros eram antimasculinidade.
“Havia leitores a dizer que isto era um absurdo feminino ‘woke’”, recordou o autor, numa sessão da conferência anual WonderCon, que decorreu este fim de semana em Anaheim, Califórnia. “Isto é um robô e um lagarto a viajarem pelo espaço.”
Só depois Gabriel Valentin percebeu o que se estava a passar: a sua série de livros tinha sido escolhida pelo movimento de censura Comicsgate, que montou uma estratégia para levar livreiros a retirar os títulos das suas lojas e torná-los indisponíveis nas bibliotecas.
“Foi uma experiência muito bizarra. Escrevi este livro para inspirar as pessoas, para tornar as suas vidas mais fáceis”, apontou. “Tudo o que remove acessibilidade é uma coisa má. Há um tempo e um lugar para praticamente tudo.”
À margem da sessão, onde foram discutidas as proibições e desafios a livros que estão a varrer os Estados Unidos, Gabriel Valentin disse ao Expresso que não concorda com proibições de qualquer tipo – mesmo de livros como “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, e que as pessoas devem podem ler e tomar as suas próprias decisões.
“Acontecem coisas más e acontecem coisas boas. Não devemos esconder-nos de nenhuma delas”, afirmou. “Penso que isso nos torna mais fortes enquanto raça, enquanto espécie e enquanto cultura.”
A discussão com vários autores na WonderCon 2025, conferência feita pelos mesmos organizadores da Comic-Con, foi pontuada por estatísticas recentes que mostram que mais de 10 mil livros foram banidos das escolas e bibliotecas no último ano letivo, 2023-2024. Praticamente triplicou o número de livros proibidos, com especial incidência em banda desenhada tanto para crianças como adultos.
“Antes havia uma discussão sobre livros que eram alvo de desafio ou questões. Agora nem sequer há conversa, há uma lista de livros que circula e que os leva a ser removidos sem ponderação”, apontou Jen Wang, autora do recente “Ash’s Cabin” e que viu um dos seus livros, “The Prince and the Dressmaker”, ser banido no Texas e noutros estados.
O título debruça-se sobre um príncipe adolescente que gosta de usar vestidos, uma espécie de história da Disney que serve para explorar o género e a identidade. Wang partilhou um episódio em que a mãe de uma adolescente descobriu o livro na mochila da filha transgénero e fez uma queixa ao conselho diretivo da escola secundária, porque o título fazia parte da biblioteca na sala de aula. “A professora foi exposta, descobriram que era lésbica e acabou por se demitir por não aguentar”, contou a autora. “Quando entrevistaram a estudante, descobriram que ela nem chegou a ler o livro.”
Professores e bibliotecários com medo
A bibliotecária Grace Sheehy, que trabalha na biblioteca de Mission Viejo (a cerca de 80 quilómetros de Los Angeles) explicou que estes movimentos de censura estão a ser liderados por grupos organizados, que recebem dinheiro sobretudo da direita política. Promovem iniciativas para causar disrupção nas bibliotecas, como esconder livros que envolvem temas LGBTQ+, colocar cartões de visita de igrejas dentro de certos livros e nalguns casos rasgar listas que incluem livros indesejados pelo grupo e arrancar bandeiras do Orgulho Gay.
“Há muitos pais a serem envenenados por medo e ódio”, considerou a bibliotecária, lembrando que sempre houve formulários para levantar dúvidas e questões nas bibliotecas, mas que agora o movimento é de proibição generalizada de quaisquer livros que pareçam tocar em temas de género e identidade.
“Os professores estão com medo de adquirir novos livros”, apontou a escritora Marcie Colleen, autora de “Time Buddies” que se prepara para editar um novo título de banda desenhada, “Happy Friendsgiving.”
Jen Wang salientou que estes grupos organizados estão a conseguir ter muito impacto porque são ruidosos, levantam problemas em escolas e bibliotecas e têm conseguido várias vitórias. “Eles querem poder controlar o que o resto das pessoas lê.”
Banda desenhada é alvo preferencial
Numa sessão dedicada à história da censura a livros de banda desenhada, a investigadora da Universidade de Portland Susan Kirtley lembrou que estes livros têm sido alvos preferenciais de proibições.
“A diferença é que agora os alvos são livros globalmente elogiados”, afirmou. É o caso de títulos como “Maus” e “Diário de Anne Frank”, sobre o Holocausto, cenários distópicos como os de “Y: The Last Man” e “Batman: The Killing Joke” ou “Watchmen.”
“O que estes livros têm em comum é que abordam diretamente a identidade e não se conformam com a identidade hegemónica”, afirmou o professor Peter Carlson, da Green Dot Public Schools. O racional para as proibições vai desde linguagem ofensiva a conteúdos explícitos e promoção da teoria crítica da raça.
“Muitas destas coisas são subjetivas. O que é linguagem ofensiva?”, questionou. Carlson, numa sessão com educadores, forneceu estratégias para combater a censura e partilhou pesquisas que mostram que a banda desenhada melhora índices de leitura, pensamento crítico e compreensão entre os alunos. “Os estudantes vão ficar a perder se permitirmos que outras pessoas ditem o que pode entrar na sala de aula.”
Dois autores renomados, Chuck Austen (autor da nova série “Defiant”) e Scott Hoffman (membro da banda Scissor Sisters e autor dos novos livros “Warm Fusion”) também se afirmaram contra a censura.
“Não acredito em banir livros”, disse Chuck Austen ao Expresso. “Este momento preocupa-me, mas acho que é difícil tirar liberdades às pessoas.” O icónico autor, conhecido pelo trabalho em “She-Ra”, “X-Men” e “Vingadores”, considerou que a situação vai corrigir-se a si própria e lembrou o progresso feito desde que ele era miúdo, quando ninguém tinha a coragem de assumir que era gay e muito menos escrever livros sobre isso. “Se vivermos o suficiente vamos ver a mudança a acontecer”, disse.
Também Scott Hoofman – conhecido em palco como Babydaddy e com concerto marcado para o Meo Kalorama em junho em Lisboa – salientou a forma como a arte sempre foi usada para abordar temas controversos e continuará a sê-lo, enfrentando a censura.
“Por vezes a ficção científica é a forma mais segura de falar de temas que não podem ser expressados literalmente”, disse. “Creio que um dos motivos pelos quais a ‘Twilight Zone’ existiu foi para falar da política da altura sem ser literal, e dar às pessoas comentário de forma codificada.”
O tema da banda desenhada, filmes e séries como expressão e até preditor de mudanças sociopolíticas permeou várias conversas na WonderCon 2025, que juntou dezenas de milhares de fãs, escritores, atores e ‘cosplayers’ em Anaheim. O evento é uma espécie de aquecimento para a Comic-Con, que regressará a San Diego entre 24 e 27 de julho.