Um novo estudo, que recorreu à inteligência artificial para analisar centenas de milhares de imagens de Marte, aponta para uma explicação seca - e não líquida - para as faixas escuras observadas em encostas marcianas. A investigação coloca em causa a ideia de que estas formações possam estar associadas à presença de água.

As faixas escuras que serpenteiam por penhascos e crateras de Marte têm intrigado os cientistas desde a década de 1970, quando foram detetadas nas imagens da missão Viking da NASA. Com tonalidade mais escura do que o terreno envolvente, estendem-se por centenas de metros em encostas inclinadas. Algumas duram anos ou mesmo décadas, outras aparecem e desaparecem rapidamente.

As chamadas linhas de declive recorrentes (RSL) tendem a surgir nos mesmos locais durante as estações mais quentes de Marte. A sua origem tem sido motivo de intenso debate na comunidade científica.

Faixas que cobrem as encostas de uma pequena cratera no sul da Amazonis Planitia. A imagem foi captada no dia 29 de março de 2021.
Faixas que cobrem as encostas de uma pequena cratera no sul da Amazonis Planitia. A imagem foi captada no dia 29 de março de 2021. ESA/TGO/CaSSIS

Duas grandes teorias em confronto

Durante anos, alguns investigadores defenderam que estas formações poderiam resultar de pequenas quantidades de água líquida, possivelmente provenientes de gelo subterrâneo ou de humidade atmosférica concentrada, misturada com sais. Esta teoria dava força à ideia de que poderiam existir nichos habitáveis no planeta.

Mas outros especialistas sempre se mostraram céticos, considerando que processos secos - como deslizamentos de terra, queda de rochas ou ação do vento - seriam explicações mais prováveis.

Milhares de imagens para construir um mapa

Para esclarecer a questão, os investigadores Adomas Valantinas, da Universidade Brown, nos EUA, e Valentin Bickel, da Universidade de Berna, usaram um algoritmo de aprendizagem automática que analisou mais de 86 mil imagens de alta resolução da Mars Reconnaissance Orbiter (MRO) da NASA.

ESA

A equipa também recorreu a outras câmaras que orbitam Marte, como o gerador de imagens CaSSIS no Trace Gas Orbiter da ESA e o HiRISE da MRO, para recolher mais informações de cor em alta resolução, bem como para monitorizar como as riscas evoluíram ao longo do tempo.

O resultado foi o primeiro mapa global das faixas de declive em Marte, que identificou mais de 500 mil destas estruturas.

"Assim que tivemos este mapa global, pudemos compará-lo com dados de temperatura, vento, humidade, atividade de deslizamento de rochas, entre outros. Isto permitiu-nos procurar padrões e correlações em larga escala", explicou Bickel.

Resultados apontam para uma origem seca

“Um grande foco da investigação sobre Marte é compreender os processos modernos em Marte — incluindo a possibilidade de água líquida à superfície. O nosso estudo analisou estas características, mas não encontrou provas de água. O nosso modelo favorece [a teoria] dos processos de formação a seco", disse Adomas Valantinas .

A análise geoestatística revelou que as faixas de declive e as RSL não estão associadas a fatores típicos de presença de água, como uma orientação específica da vertente, grandes variações de temperatura ou níveis elevados de humidade. Pelo contrário, estão fortemente correlacionadas com zonas onde se regista maior velocidade do vento e maior deposição de poeira.

Segundo os autores, as riscas formam-se provavelmente quando camadas de poeira fina deslizam por encostas íngremes. A origem do deslizamento pode variar: as faixas são comuns perto de crateras de impacto recentes, enquanto as RSL surgem frequentemente em zonas com remoinhos de poeira ou quedas de rochas.

Futuras missões a Marte

Os resultados do estudo, publicado a 19 de maio na Nature Communications, têm implicações importantes para futuras missões a Marte.

A NASA evita explorar locais potencialmente habitáveis para não correr o risco de os contaminar com micróbios terrestres. Este novo estudo sugere que as faixas de encosta não representam um risco significativo nesse sentido.

"Esta é a vantagem da abordagem de big data. Permite-nos eliminar certas hipóteses antes de enviar missões ao terreno", disse Valantinas.

Riscas cobrem as encostas do Monte Olimpo. A imagem foi captada no dia 28 de abril de 2023.
Riscas cobrem as encostas do Monte Olimpo. A imagem foi captada no dia 28 de abril de 2023. ESA/TGO/CaSSIS

"Compreender a história da água em Marte e se esta permitiu que a vida florescesse está no cerne das missões ExoMars da ESA. O Trace Gas Orbiter continua a obter imagens de Marte a partir da órbita para compreender o seu passado antigo e a sua potencial habitabilidade. A nave espacial devolve imagens espetaculares e fornece o melhor inventário de gases atmosféricos, fazendo o mapa a superfície do planeta em busca de locais ricos em água", segundo a ESA.