
Dois novos estudos publicados esta quarta-feira na revista Nature utilizam tecnologias de sequenciação de ADN avançadas para fazer o mapa da variação genética humana com maior detalhe. As descobertas, baseadas em dados do Projeto 1000 Genomas, revelam alterações estruturais até agora invisíveis, com implicações diretas para o conhecimento da biologia humana e para a medicina de precisão e que podem melhorar o diagnóstico e estudo de várias doenças.
Desde o fim do Projeto 1000 Genomas, em 2015, os dados recolhidos de mais de 2500 pessoas têm sido uma fonte contínua de descobertas científicas. Agora, com novas ferramentas tecnológicas, investigadores do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL) e de várias instituições parceiras conseguiram ir mais longe e criar os mapas mais completos de variação genética humana até à data .
Uma nova geração de tecnologias de sequenciação de ADN permite agora aos cientistas observar partes do genoma humano que até agora eram invisíveis - regiões repetitivas, complexas ou demasiado variáveis para serem analisadas com os métodos que existiam.
"Durante muito tempo, as nossas referências genéticas excluíram grande parte da população mundial. Este trabalho capta a variação essencial que ajuda a explicar porque é que o risco de doença não é o mesmo para todos", afirmou Christine Beck , geneticista do Laboratório Jackson ( JAX ) e do Centro de Saúde da Universidade de Connecticut.
Do Projeto Genoma Humano ao pangenoma
O primeiro grande avanço no conhecimento do ADN humano surgiu em 2003, com a conclusão do Projeto Genoma Humano, que sequenciou, pela primeira vez, o genoma completo mas de um grupo reduzido de pessoas.
Em 2007, nasceu o Projeto 1000 Genomas, com o objetivo de fazer um mapa da diversidade genética de indivíduos de diferentes origens geográficas. Os seus dados, publicados em 2015, incluem mais de 2.500 genomas de pessoas com ascendências variadas. Foi um passo importante para perceber o que nos torna únicos e como as variações genéticas influenciam a saúde.
Mais recentemente, em 2022, os cientistas conseguiram sequenciar o genoma humano completo sem lacunas, algo que não tinha sido possível anteriormente. E, em 2023, o Consórcio de Referência do Pangenoma Humano (HPRC) publicou na Nature um conjunto de sequências genéticas de 47 pessoas de diferentes partes do mundo, representando uma maior diversidade genética, com mais de 99% de precisão.
O novo estudo agora divulgado expande significativamente este esforço: preenche 92% das lacunas que ainda restavam e faz um mapa das variações genéticas com um nível de detalhe e diversidade nunca antes atingido.
6 mil milhões de bases ou letras do ADN em 23 pares de cromossomas contêm as instruções genéticas que transmitem as características herdadas dos pais
Nova tecnologia: sequenciação de leitura longa
A chave para esta nova etapa foi a sequenciação de leitura longa, uma tecnologia que permite analisar fragmentos muito maiores de ADN do que os métodos usados até há poucos anos. Isso permite montar genomas completos e identificar alterações genéticas profundas, como partes de ADN que são eliminadas, duplicadas ou trocadas de posição.
"Há cerca de 15 anos, a maior parte da sequenciação do genoma humano baseava-se em 'leituras' de pequenos excertos de ADN, o que não era suficiente para montar um genoma completo. No entanto, desde há cerca de cinco anos, tornou-se possível sequenciar genomas humanos de forma rotineira com novas tecnologias comercialmente disponíveis que podem descodificar excertos muito maiores de ADN, permitindo-nos montar o genoma completo dos indivíduos e avaliar todas as partes do genoma em busca de variação genética", explicou Jan Korbel , investigador do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL) e coautor dos novos estudos.
Estas variações no ADN estão associadas a várias doenças genéticas, incluindo cancro, perturbações do sistema imunitário e doenças neurológicas.
- Estudo 1: mais de mil genomas de cinco continentes
No primeiro dos estudos agora publicados, os investigadores analisaram genomas de 1019 pessoas do conjunto original do Projeto 1000 Genomas, abrangendo 26 populações dos cinco continentes. A colaboração envolveu equipas do EMBL, do Instituto de Patologia Molecular (IMP) de Viena, do Centro de Regulação Genómica (CRG) em Barcelona, e do EMBL-EBI, no Reino Unido.
Usando a nova tecnologia, conseguiram identificar alterações estruturais com uma precisão sem precedentes. Este novo mapa genético expandiu mais de 20 vezes a referência anterior, usada desde 2023 com o projeto internacional do Pangenoma Humano. Segundo os cientistas, permitirá procurar novas ligações entre alterações genéticas e doenças comuns.
"O novo mapa deste estudo é mais preciso e aprofundado do que qualquer outro criado até agora. Vai permitir-nos procurar novas ligações entre variações genéticas e doenças", sublinhou Sarah Hunt, do EMBL-EBI.
- Estudo 2: menos pessoas, mais pormenores
O segundo estudo focou-se em apenas 65 indivíduos, mas com um objetivo ambicioso: montar genomas completos com a maior precisão possível com a cobertura integral de vários cromossomas - algo difícil de conseguir devido à complexidade e repetição de certas zonas genéticas.
Com estes dados, foi possível analisar zonas até agora inacessíveis com métodos tradicionais, como os centrómeros - os pontos de ligação dos cromossomas - que estão associados a distúrbios do sistema imunitário e ao cancro.
Este estudo foi realizado em colaboração com investigadores de vários institutos dos EUA, que juntos constituíram parte do Consórcio de Variação Estrutural do Genoma Humano.
Os dois estudos têm implicações clínicas importantes. Quando usada como referência para analisar novos genomas, a base de dados de 1019 amostras permitiu identificar com maior precisão variações genéticas associadas a doenças, em comparação com os métodos tradicionais.
"Um dos estudos usa uma coorte grande com menor resolução; o outro tem menos indivíduos, mas sequenciação muito mais detalhada. As conclusões são complementares e enriquecem o retrato do genoma humano", explicou Jan Korbel.
Medicina de precisão para mais populações
Ao sequenciar regiões do ADN que eram consideradas demasiado difíceis de estudar, os cientistas estabeleceram um novo padrão para a análise do genoma humano. Segundo Christine Beck, este avanço ajuda a garantir que os benefícios da medicina de precisão cheguem a todas as populações e não apenas às mais representadas em estudos anteriores.
"Os nossos genomas não são estáticos, assim como a nossa compreensão. Este é um passo essencial para tornar a investigação genética verdadeiramente representativa da diversidade humana".
Os dados dos dois estudos estão agora disponíveis publicamente e já estão a ser usados para desenvolver novos métodos de análise genómica à escala global.