Sábado, 28 de Junho, véspera de São Pedro, 22 horas, Largo do Intendente, Lisboa. De um palco exageradamente grande e artilhado ressoam gravações dos Xutos e Pontapés colocadas por duas ou três pessoas estáticas em cima daquela estrutura. Quatro ou cinco pessoas contemplam o espetáculo de forma pouco entusiasmada e umas dezenas compõem o ramalhete consumindo nas barracas e esplanadas que ocupam a maior parte do espaço público. Aquele que há dez anos era um dos locais mais vibrante e multicultural da cidade de Lisboa, foi consumido por hotéis, esplanadas e interesses imobiliários que ali se alambazaram.

Em artigo recente[1], o economista Nuno Teles identifica o “nexo turismo-imobiliário” como o eixo principal da alteração estrutural que o país está a viver e alerta para o estrondo da crise que há-de vir. Teles demonstra que esta política económica baseada no turismo e no imobiliário é produtora de significativas mais valias financeiras de poucos, ao mesmo tempo que é extraordinariamente dependente dos mercados internacionais e desqualificadora da mão de obra – a partir dos baixos salários, das baixas qualificações e do baixo nível de empregabilidade que as duas atividades produzem por comparação com o volume de negócios que geram. O Largo do Intendente, é um exemplo maior de depredação da cidade por este nexo turismo-imobiliário mas toda a Lisboa continua a ser consumida sem freio e regulação.

É cada vez mais difícil viver e trabalhar em Lisboa. Lisboa tem 334 unidades hoteleiras, das quais 187 abriram nos últimos dez anos. Nos últimos quatro anos sob a liderança de Carlos Moedas, o município aprovou mais 54. Com diferentes geometrias de poder municipal e sobre a batuta do Plano Diretor Municipal em vigor, a cidade tem vindo a transformar-se num inferno para a maioria das pessoas que nela vivem e trabalham.

O PDM de 2012, anunciado como um instrumento para captar investimento, representa uma ideia passada de planeamento e gestão territorial que parte do princípio que o Estado deve estimular a iniciativa privada e que ela será o principal construtor de cidade. Esta receita foi ensaiada noutras geografias nos anos 80 e 90 do século passado, e sabia-se ser uma solução falida também pela necessidade de respostas às alterações climáticas ou por uma ideia de cidade mais humanizada e menos mercantilizada.

Ao invés, Lisboa mantém-se até hoje sob o paradigma do “mercado livre” em que tudo pode ser objecto de consumo, sem entender a urgência de pensar a construção da cidade a partir de outros paradigmas. Ao mesmo tempo que em Lisboa se aprovava o PDM, outras cidades começavam a desenhar estratégias urbanísticas a partir de iniciativas de base local e comunitária, regulação de rendas e do turismo, políticas de mobilização de casas vazias para cumprir a sua função social, reabilitavam-se espaços públicos em torno da ideia do comum e da sua utilização por todas as pessoas. É por estes anos que despontam como referências internacionais os casos das Superilhas de Barcelona, a cidade dos 15min em Paris ou a pedonalização dos centros urbanos, da escala de Pontevedra à de Milão. No contexto internacional, Lisboa é apontada como o mau exemplo de políticas urbanas e ambientais. Bom exemplo, só nos salões internacionais do imobiliário e do turismo predatório.

Na hora da verdade, o município prefere manter práticas enraizadas. Assiste à destruição da economia local, combate as iniciativas das comunidades que aspiram a construir cidade e privilegia o interesse financeiro da cadeia hoteleira ao Fundo Imobiliário. Escuda-se em regulamentação que as sucessivas maiorias produziram para, de forma compungida, nos dizerem que, ainda que não concordem, o PDM obriga a aprovar.

Sendo certo, e assumido por todos, que este PDM tem de ser revisto, na sua forma e princípios estruturantes, ele terá de ser produzido e orientado com coragem e conhecimento, além das receitas que nos trouxeram até aqui. Terá de ser transparente, aberto e ajustável às formas que a cidade for assumindo. Terá de ser um instrumento de regulação que permita que haja vida (e não negócio) além do Plano.

Lisboa precisa de outros horizontes, outras aspirações e outros sonhos. Não pode viver espartilhada por interesses financeiros. Aqueles que a tentam condenar a ser uma estrutura de produção de capital e monofuncional na dependência do turismo-imobiliário, devem ser retirados dos processos decisórios. A cidade para as pessoas, jargão que pulula em todos os discursos, concretiza-se nos que assumirem que têm uma política de controlo de unidades de hotelaria e alojamento local, de controlo de rendas, de pressão para as 47.000 casas vagas serem arrendadas, de participação e incentivo concreto ao movimento popular, associativo e das coletividades dando-lhes instrumentos para poderem fazer parte da construção da cidade. Uma cidade que cuide das pessoas e que não as despreze. Uma cidade que decida a partir do interesse comum de todas as pessoas e não a partir do interesse privado de uns poucos. Um cidade que dê prioridade à vida que nela acontece e não ao negócio.

[1] Teles, Nuno. “Turismo-imobiliário e Chega: o nexo a desarmar na economia”, Le Monde diplomatique – edição portuguesa, nº 224, Junho 2025