
Há pouco tempo, ouvi uma história que ficou a ecoar na minha cabeça. Uma mulher ponderava ter um segundo filho. Mas, antes de tomar a decisão, fez uma pergunta à mãe: “Estarias disponível para me ajudar, como fizeste com o primeiro?” A mãe, que já tinha criado quase sozinha o neto, respondeu que não. E o segundo filho nunca nasceu.
Esta história podia parecer excecional - mas é, infelizmente, o retrato de uma geração que desejava estar presente, mas foi apanhada de surpresa por uma realidade para a qual ninguém a preparou. Uma geração de pais e mães que, antes de decidir crescer em família, tem de avaliar a rede que lhes poderá substituir na presença. Não perguntam se têm amor, condições financeiras ou vontade. Perguntam se alguém poderá estar presente por eles. Porque eles próprios não conseguem.
Vivemos uma vida em que trabalhamos para dar tudo aos nossos filhos - menos tempo. E, talvez pela primeira vez em Portugal, nenhuma das figuras parentais está realmente presente. Ambos trabalham. Ambos estão esgotados. Ambos chegam ao fim do dia sem sobras de si. E os filhos crescem com tudo... exceto com os pais.
O paradoxo moderno: Trabalhamos para lhes dar tudo - e damos-lhes tudo menos nós
Chegamos a casa ao fim do dia com o coração apertado e os ombros carregados. Carregados de sacos, de emails por responder, de culpas, de listas por cumprir. Os filhos esperam ansiosos e entusiasmados. Esperam o momento em que os olhos dos pais se desliguem do mundo e se liguem a eles. Será hoje que têm tempo para mim?
Queríamos sentar-nos com eles. Olhar, brincar, ouvir. Mas os nossos olhos estão gastos. A cabeça ainda está no trabalho. O corpo quer parar, mas a rotina empurra-nos: banho, jantar, mochilas, pijama, cama. Tudo a correr. Sempre a correr.
Dizemos “já vou”, “espera só um bocadinho”, “agora não posso”. Apontamos para o tablet, para a televisão, para o quarto. Recorremos a tudo o que nos substitua, mesmo que por dez minutos. E dizemos a nós próprios que é só hoje, que amanhã será diferente. Mas o amanhã vem igual. E eles aprendem, devagar, a não esperar.
Tentamos compensar com presentes, atividades, distrações. Damos tudo o que conseguimos — porque amamos profundamente os nossos filhos. E mesmo assim, sabemos que não chega. Porque os filhos não querem tudo - querem nós. Aquilo que os nossos filhos mais precisam - tempo, atenção, presença - é o que menos lhes conseguimos dar.
Querem olhos nos olhos, braços que não tenham pressa, alguém que repare quando estão tristes - mesmo quando não dizem nada.
E a verdade mais dura é esta: trabalhamos horas a fio para lhes dar o melhor, mas no caminho perdemo-nos deles. E às vezes, de nós próprios.
E o mais cruel é isto: é por trabalharmos tanto para lhes dar tudo que acabamos por não lhes dar aquilo que só nós podemos oferecer.
Vivemos para eles - mas não vivemos com eles.
Uma ausência silenciosa, que se instala devagar - mas com consequências que duram uma vida.
E isto não é culpa individual. Não é falha de cada pai ou mãe. É um sistema inteiro que nos empurra para esta ausência. Uma sociedade que exige produtividade, flexibilidade, sacrifício — mas que não nos dá espaço para sermos simplesmente pais.
E todos nós, pais e mães, sabemos isto. Mesmo que não o digamos. Mesmo que tentemos fingir que está tudo bem.
Mas está tudo longe de estar bem.
A pergunta que fica é simples, e brutal: os nossos filhos vão lembrar-se de tudo o que tiveram - ou de tudo o que nós não fomos?
Uma geração de filhos órfãos de pais vivos e ocupados
Não há luto, mas há ausência. Não há abandono, mas há solidão.
Estamos a criar uma geração de filhos que tem tudo — menos presença. Têm quartos cheios, agendas preenchidas, atividades programadas ao minuto. Mas faltam-lhes os olhos atentos. Os colos demorados. Os silêncios partilhados sem pressa. Faltam-lhes os pais.
E o mais cruel é que esses pais não desapareceram. Estão ali. Vivem na mesma casa. Dormem na mesma cama. Dão beijinhos à pressa, histórias pela metade, respostas entre emails. Estão presentes no corpo - mas ausentes no tempo, no olhar, no pensamento.
Não queriam isto. Nunca quiseram.
Sonharam ser pais diferentes. Mais presentes, mais calmos, mais disponíveis. Quiseram dar amor todos os dias, criar memórias com tempo dentro. Mas ninguém os preparou para o turbilhão. Ninguém lhes disse o quão difícil seria. A geração anterior não passou por isto. Tinham uma mãe em casa, ou pelo menos uma rede. Tinham tempo - ou sabiam que, se precisassem, o teriam. Agora, nem isso.
Hoje, ser pai ou mãe é uma corrida sem fim, onde não se pode parar — porque há filhos para alimentar. Mas nem só de pão vive o homem. Também é preciso alimentar com amor.
E o mais devastador é que muitos de nós já estamos a criar filhos com saudades de nós — ainda enquanto somos vivos, e ainda enquanto são pequenos.
São órfãos de pais exaustos. De pais vivos, mas presos num sistema onde amar em tempo útil se tornou um luxo.
E esta orfandade não grita. Não se vê em diagnósticos nem se resolve com terapia da fala. Vai crescendo em silêncios, em birras sem razão, em noites em que não adormecem, em medos que não sabem nomear. Cresce num coração que bate com a pergunta muda: "Onde estão os meus pais?"
O que será deles quando forem grandes?
O que será de nós quando finalmente pararmos, e percebermos que crescemos separados — não por falta de amor, mas por falta de tempo?
A ausência dos momentos pequenos
Não é preciso muito para marcar uma infância. Não são viagens, festas ou presentes. São os gestos pequenos. O chão da sala onde alguém se sentava connosco. O cheiro do jantar feito com calma. Um par de olhos que ouvia, mesmo quando não dizíamos nada.
É disso que os filhos se lembram. Dos instantes em que nos tinham por inteiro.
Mas esses momentos estão a desaparecer. Foram sendo empurrados para os intervalos da agenda, para os minutos entre tarefas, para os fins-de-semana onde já só sobra cansaço. E, aos poucos, deixámos de ter tempo para viver com os filhos. E mesmo quando estamos com eles, muitas vezes a cabeça não está. Está no que falta fazer, no que ficou por resolver. Brincamos a pensar nas listas, nos prazos, no jantar, na roupa por dobrar. Fingimos que estamos, porque adorávamos poder estar — mas, por dentro, só queremos que o tempo passe, a cabeça corre atrás do tempo, e o corpo implora por descanso. E o que era para ser amor transforma-se, sem querer, em mais uma tarefa a cumprir.
Vivemos tão acelerados que já nem sabemos o que é estar. Sentar, ouvir, observar sem corrigir. Partilhar um silêncio. Reparar. Estar, de verdade.
E no fundo, é isso que todos nós sonhámos: ter tempo para amar os nossos filhos devagar. Para fazer panquecas numa terça-feira. Para caminhar de mãos dadas até à escola. Para brincar no tapete, mesmo que a casa esteja por arrumar.
Mas ninguém nos disse que seria tão difícil. Ninguém nos explicou que viveríamos num sistema que nos trocaria por produtividade, e que nos cobraria cada minuto “parado” como se fosse um luxo imperdoável.
E os nossos filhos crescem. E nós sentimos que o tempo está a fugir por entre os dedos.
E quando damos por isso, já passou. A infância deles — e uma boa parte da nossa vida também.
Política e sociedade: Porque é que ser pai ou mãe em Portugal é tão difícil?
Não é por falta de amor que os pais não estão. É por falta de condições.
É fácil apontar o dedo aos pais de hoje — dizer que estão sempre no telemóvel, que não sabem desligar do trabalho, que enchem os filhos de atividades e presentes. Mas poucos se perguntam: em que momento é que ser pai ou mãe se tornou uma missão quase impossível?
Hoje, ser mãe ou pai em Portugal é correr contra um relógio que nunca abranda.
É ter empregos a tempo inteiro com exigências que extravasam o horário. É sair às sete e chegar às oito. É trabalhar em dias em que as escolas estão fechadas, em horários que não encaixam com os das creches, das escolas, das férias escolares — num malabarismo diário que esgota o corpo e ocupa a cabeça.
É não ter avós disponíveis — porque os avós também trabalham, ou já não têm força, nem saúde, nem capacidade. É depender de centros de estudo, de amas, de ATL — e mesmo assim, sentir que nunca se chega a tempo, nem se chega inteiro.
Ser pai ou mãe é viver com um nó na garganta. Porque se ama profundamente, mas não se consegue estar. É correr contra o tempo… e mesmo assim chegar atrasado. É, por vezes, simplesmente querer fugir, porque já não aguentamos. Porque a cabeça está cansada. Porque dói. Porque transborda. Porque está em burnout.
E o mais cruel é que ninguém avisou. Ninguém preparou esta geração para isto. Sempre se ouviu dizer “tudo se cria”. Mas ninguém nos avisou que amar também pode doer — quando não temos tempo para o fazer com calma.
E será que interessa o “como se cria”? Será que interessa crescer em braços apressados?
Será que interessa ser embalado por quem está sempre a meio caminho entre o amor e a obrigação?
Será que interessa ser criado no meio de listas de tarefas por concluir? Será que interessa criar com pressa, com cansaço, com ausência?
Não basta que as crianças sobrevivam. É preciso que se sintam amadas. E o amor, sem tempo, não chega inteiro.
Há países que já perceberam que sim — que interessa. Países onde os pais têm tempo real com os filhos. Onde o tempo dos pais com os filhos é visto como um bem essencial — não só para as famílias, mas para o futuro de toda a sociedade. Onde há horários flexíveis, licenças pagas e prolongadas, semanas de trabalho mais curtas para quem cuida. Países onde se investe na presença familiar como quem investe no alicerce de um edifício. Onde se percebe que uma infância vivida com amor e presença é um bem público — e não apenas um esforço privado. Países onde se compreende que não se cria uma geração saudável com pais em piloto automático.
Em Portugal, exige-se tudo aos pais. Tudo — sem lhes dar nada em troca. Nem tempo. Nem espaço. Nem estrutura. E quando eles desfalecem, ouvimos apenas: “é assim para todos” — como se o facto de todos estarmos a sofrer ao mesmo tempo tornasse o sofrimento mais aceitável, como se isso justificasse o que está mal.
Como se a normalização da dor a tornasse aceitável e servisse de desculpa para não agir.
Mas não é aceitável.
A verdade é que não precisa de ser assim. Isto não é inevitável. Não é natural. Não é justo.
É o resultado de escolhas e é possível fazer diferente.
E enquanto quem tem poder para mudar continuar a achar que este esforço invisível das famílias é natural, aceitável ou suportável, não haverá mudança. Porque muitos dos que têm poder para mudar também vivem este esforço cruel — ou veem-no, todos os dias, nos olhos dos seus filhos, dos seus colegas, dos seus netos.
Porque o que falta não é amor. É coragem política. É visão social. É humanidade.
O que falta é a vontade de quem tem poder para mudar. O que falta é que quem tem poder queira realmente ver. Que reconheça este esforço invisível — e tenha coragem de transformar o sistema que o exige.
E depois, mais um filho?
"Mãe, posso ter mais um filho?"
A pergunta ecoa, inocente e devastadora. Não é só uma mulher a perguntar à mãe se pode contar com ela. É toda uma geração a perguntar se ainda há espaço para o amor. Se ainda há tempo. Se ainda é possível.
A vontade está lá. O amor também. Mas a estrutura ruiu. Queríamos viver a parentalidade como se vê nos filmes: com tempo, com calma, com riso. Mas vivemo-la num cenário em que o amor precisa de agenda e os abraços têm hora de fim.
E então perguntamos, em silêncio: Será que posso ter mais um filho? Será que posso amar mais um, quando mal consigo estar para os que já tenho? Será que é justo trazer mais uma vida para dentro de um sistema que nos impede de viver com tempo?
E a resposta, muitas vezes, é não. Não por falta de vontade - mas por falta de condições reais para amar com tempo.
Porque já não conseguimos ser mais do que somos - e mesmo assim, não chega.
Criar um filho devia ser um ato de esperança, não uma batalha de sobrevivência. Devia ser feito com presença, não com pressa. Devia ser alimentado com tempo, não apenas com pão.
Porque no fim, o que fica não são os brinquedos, nem os colégios, nem os TPCs feitos a tempo. Ficam os momentos. Fica a presença. Fica o amor que se dá quando se está - inteiro.
É isso que os filhos vão lembrar.
E se um dia nos perguntarem, com os olhos grandes: "Mãe, pai, por que não estiveste mais comigo?"
Que pelo menos possamos responder com verdade:
Porque quis. Quis muito.
Quis estar mais contigo.
Desejei estar mais contigo.
Porque lutei todos os dias para conseguir.
Mas o mundo estava errado. E mesmo sem o conseguir mudar, nunca deixei de tentar - por ti.
Para que um dia, ao olhares para trás, saibas que foste, sempre, o meu maior amor.
Reflexão sobre a “ausência dos pais na vida dos filhos”
A autora deste texto, Laura Cavalcante, é mãe de três crianças com 3, 5 e 7 anos. Reside e trabalha na zona do Porto. Tem 41 anos e é investigadora científica, carreira que interrompeu durante um período para conseguir estar mais tempo com os filhos.
O depoimento de Laura chegou-nos pouco antes do Dia Mundial da Criança:
"Li o artigo sobre as estratégias dos pais da Dinamarca e tocou-me profundamente. Fez-me refletir sobre a realidade que vivemos cá em Portugal - especialmente sobre a ausência dos pais na vida dos filhos, não por falta de amor, mas por falta de tempo, apoio e estrutura".
“Inspirada por essa leitura”, Laura escreveu o texto que acima publicamos, uma reflexão sobre as dificuldades sentidas pelos pais que se preocupam em criar crianças felizes em Portugal.