
Nasceu cantora há 40 anos, renasceu mãe em 2023, e, entre um e outro momento, nunca se desligou dos batimentos criativos. “Estive ativa até aos sete meses [de gravidez], de saltos no palco, e aos saltos”, recorda Mayra Andrade, mais de dois anos depois do nascimento da filha Dayo, nome grafado na língua africana yorubá, e que significa alegria.
“Ela veio toda em música. Eu faço linhas melódicas esquisitas, semitonadas, a ver se ela reproduz, e ela consegue”, conta a artista neste episódio d’ O Tal Podcast, reconhecendo nos primeiros passos da filha a própria caminhada. “Começou a cantar ainda não tinha um ano”, nota Mayra, acrescentando que com essa idade também já expressava a veia musical.
“Sempre fui uma criança muito espiritualizada. Eu sei o nome das energias que me acompanham, e eu invoco estas energias antes de pisar no palco, porque é muito importante que aquele espaço sagrado, que é o palco, e o dom que eu recebi, não seja em vão”.
Alinhada com cada nota e ritmo – “Oro sempre muito para que cada expressão feita no palco chegue ao coração das pessoas” –, a artista diz da filha Dayo o que o seu pai, Carlos Andrade, também diz de si: “Nasceu cantora”.
O olhar materno e maternal aguça-se à medida de um maior autoconhecimento e consciência da vida. “Acabo, muitas vezes, por não valorizar o poder que tenho. Só uma pessoa com um poder tão grande em si é que consegue, com dignidade e no seu silêncio, estar nos palcos do mundo a cantar, com uma bebé ao colo, a amamentar e a lidar com coisas que não deveria ter que lidar”.
A versatilidade favorece “a sensação de estar num multitasking existencial constante”, nota Mayra, observando: é “como se estivesse a plantar uma floresta, a segurar um navio para não afundar, a semear não sei o quê, a voar, a enterrar-me”.
Entre a terra, o mar e o ar, a artista cabo-verdiana vai-se encontrando. “O meu corpo acabou por ser celeiro de muitas memórias, de muitas vivências, e é como se eu ainda estivesse a descobrir, através do corpo, os contornos emocionais do que vivi nos últimos poucos anos da minha vida”.
O reconhecimento das velhas cicatrizes segue com novas marcas. “Estou na fase da serpente que muda de pele, da borboleta que sai do casulo, e essa metamorfose tem etapas que não são bonitas”.
A transição encontra tradução musical em “reEncanto”, o mais recente álbum da cantora cabo-verdiana, gravado ao vivo e maturado em gestação.
“Estava já a deixar essa vida [de Dayo] crescer em mim, e a reverberar na minha voz de uma forma diferente”.
De lição em ensinamento, a cantora e compositora reconhece: “Nunca aprendi muito pelo amor, nem pela alegria. Acho que somos uma espécie que aprende pela dor e adversidade”.
Orgulhosamente africana, esta filha de um antigo combatente pela Independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau apresenta-se também como pan-africanista.
“Sou africana e sou de uma nação crioula. Temos uma herança genética e cultural e social europeia, mas somos um país africano. Nós aprendemos a partir pedras, e espremer leite das pedras”.
Sem renunciar aos sonhos de um destino mais justo para África, Mayra Andrade, premiada este ano com o Lifetime Africa Achievement Prize nos Millennium Excellence Awards, lembra que “é difícil pensar num futuro brilhante para o continente africano sem pensar numa mudança global”.
Acompanhe a conversa, com Georgina Angélica e Paula Cardoso.
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Pioneiro na cultura negra e afro-descendente em Portugal, é um espaço onde cabem todas as vidas, emocionalmente ligadas por experiências de provação e histórias de humanização.
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Georgina Angélica é especialista em Educação e Intervenção Social. Atua como educadora, formadora e palestrante, com mais de 20 anos de experiência em Portugal, Inglaterra e Angola.
Paula Cardoso é fundadora da rede Afrolink e autora da série de livros infantis ‘Força Africana’. É ainda apresentadora do programa de TV "Rumos" , transmitido na RTP África.
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