A rotunda da Praça dos Omíadas, no coração de Damasco, transformou-se num carrossel de viaturas de todos os tipos, numa orquestra de buzinas e salvas de tiros para o ar e algum fogo de artifício, gritos de liberdade e palavras de gratidão divina e ainda hinos contra o regime tombado, tal como a bandeira tricolor de três estrelas, que simboliza o novo ciclo histórico na Síria.
"A nossa vitória significa liberdade", comenta Abdurrahman Al-Jazari, um homem de 43 anos que se juntou com a família às celebrações, que se prolongam desde domingo, após as forças de oposição sírias terem assumido o controlo da cidade, levando à fuga do Presidente Bashar al-Assad para a Rússia.
Nos últimos dois dias vigorou o recolher obrigatório noturno em Damasco, mas ao cair da noite de hoje era já claro que uma multidão em festa não tencionava recolher às suas casas, confluindo para a maior praça da cidade, iluminada com lâmpadas em néon com as cores da rebelião armada, em contraste com a negritude de uma capital a braços com cortes críticos de eletricidade.
Antes da operação relâmpago das forças rebeldes, que em 12 dias encerrou a dinastia de mais de cinco décadas de Bashar al-Assad e do seu pai, Hafez, qualquer manifestação no mesmo local "seria reprimida de imediato e os seus autores mortos sumariamente", segundo Abdurrahman Al-Jazari, enquanto toda a família executa gestos de tiros de metralhadora e de enforcamento.
Por outro lado, observa que os sírios "já não tinham vida nem muito a perder" e que a esta revolução traz um momento de "enorme felicidade inesperada", mas também a consciência de que as dificuldades não terminam de um dia para o outro, deixando o recado às novas autoridades para que "respeitem esta liberdade".
Para já, essa é uma sensação que Masha não tenciona desperdiçar enquanto perdura. "Estes são os nossos momentos", exclama a doméstica de 23 anos debaixo de uma abaya preta, enquanto reconhece que perdeu o medo de medir as palavras desde que os militares revoltosos saíram triunfantes de uma luta de décadas, tal como a sua irmã Anami, que remata o discurso: "Ganhámos o direito a ter esta vitória".
Os filhos de ambas acendem velas incandescentes, ao som de uma canção célebre de al-Sarout, um antigo futebolista sírio que se tornou combatente e autor de hinos anti-regime antes de ser morto em combate durante a guerra civil: "Céu, céu, céu (...) Pátria de grande coração, até o seu inferno é o paraíso".
É também ao inferno que as duas irmãs também se referem ao recordar um tio que acaba de ser libertado da infame prisão de Sednaya, nos arredores de Damasco, felizes pelo fim da sua clausura de duas décadas acompanhadas de tortura, a que "sobreviveu mas não muito". Está agora no hospital.
Na Praça dos Omíadas veem-se militares revoltosos das várias fações que se unificaram para fechar o cerco a Bashar al-Assad e que descarregam os carregadores das suas armas automáticas para o mesmo céu a que muitos manifestantes dirigem orações de gratidão e coros de "Alá é grande".
Ao contrário de vários testemunhos a dar conta da perda de esperança ao longo da mão de ferro da dinastia Assad que parecia sem fim, e agravada pelos últimos 13 anos da devastadora guerra civil que se seguiu à Primavera Árabe, dois combatentes rebeldes afirmam que nunca deixaram de acreditar.
Há duas semanas apenas, Asen Khalid Kedro, 24 anos, e Mohamed Salem, 22, encontravam-se ambos na frente de Alepo, segunda maior cidade do país, no extremo norte, e hoje à noite repousam as mãos sobre as suas armas em segurança, em contemplação de uma festa que ajudaram a criar.
Para ambos trata-se de um regresso a casa, na capital síria, ao fim de seis anos de serviço nas forças de oposição, que se precipitaram em poucos dias quase sem resistência do exército regular afeto ao regime, que em parte desertou: "Foi uma batalha fácil. Eles ofereceram-nos a vitória", descreve Asen.
Os dois militares rebeldes tencionam manter-se nas novas forças armadas, e Asen procura por seu lado conhecer o paradeiro do pai, preso há 12 anos e do qual nada sabe desde então, e dedicar o seu futuro combate à justiça, outra palavra cara nas celebrações de hoje em Damasco.
"Nunca quisemos sangue. Foi Assad que pediu esta guerra ao matar mulheres e crianças e usar as suas marionetas e armas químicas contra o seu povo", justifica o militar, ao frisar que "não há liberdade sem justiça", que passa por trazer o Presidente deposto a Damasco, fazê-lo responder pelos seus crimes e, no final, "enforcá-lo nesta mesma praça".
E foi justamente para celebrar o fim de "um regime criminoso e cruel" que Lama, 35 anos, partiu com a sua filha há vários dias de Idlib, no noroeste do país, perseguindo os avanços das forças revoltosas do movimento islamita HTS, chefiadas por Abu Mohammed al-Jolani, até estas se juntarem em Damasco ao Exército Livre da Síria, que tinha acabado de tomar a capital.
"A minha filha não conheceu mais nada a não ser a guerra", comenta Lama, assistindo à filha em pose com uma arma pedida emprestada a um soldado rebelde, antes de sentenciar que "quem procura a liberdade, a liberdade encontra". Para a adolescente de 14 anos, é "toda uma nova vida que se abre a partir de agora".
*** Henrique Botequilha (texto) e António Pedro Santos (fotos), enviados da agência Lusa ***
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