"Era o fim da pessoa que vinha para aqui", explica, em conversa com a Lusa enquanto arranja calçado na sombra do portão, fechado à chave, entre azulejos com quase 100 anos, grafitados, ainda com a marca do número 10, do cruzamento das avenidas dos Mártires de Machava e Ahmed Sekou Touré.

Todas as restantes entradas da vivenda construída em 1934 no coração de Maputo, ampliada em 1950 e hoje classificada como Imóvel de Interesse Arquitetónico, estão entaipadas e protegem o interior da ocupação por pessoas em situação de sem-abrigo, como já aconteceu em anos anteriores.

"Só ouço pelas pessoas a dizerem que aqui era uma cadeia, mesmo terminal (...) Que era a última cadeia, quando alguém chegava aqui até a família chorava, 'não sabemos se o nosso filho vai sair ou não vai sair'", conta Celestino Gabriel Mondlane, 37 anos.

Depois de perder o emprego, há seis meses que a entrada da Vila Algarve é o seu posto de trabalho, e de negócio, com calçado remendado espalhado pelo passeio e pela entrada, aguardando clientes.

"Quando eu ando nas casas, os donos têm falado 'aqui não queremos sapateiros'. Já na Vila Algarve é uma ruína, posso estar aqui e ninguém pode-me tirar. Pode-me tirar, sim, não é meu o local, mas acho que vai durar", diz, garantindo que com os cinco a seis clientes que ali o procuram por dia consegue, pelo menos, comer.

"Dá para alimentar, para enganar a casa, não morrer à fome", conta.

Da imponente vivenda no centro de Maputo, decorada por extensos mosaicos com motivos naturalistas, sobram hoje pouco mais do que paredes, tetos e telhados, mas também histórias sombrias do período colonial, quando a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) a confiscou, passando a usá-la como local de tortura de então combatentes pela independência moçambicana.

Histórias como as que o poeta moçambicano José Craveirinha (1922-2003) retrata nos seus poemas "Não sei se é uma medalha" de 1967, e nas duas versões de "Vila Algarve", de 1988 e de 1998, sobre o período em que ali esteve detido, com passagem pelo interrogatório da PIDE.

Em 25 de junho de 1975, Moçambique proclamou a sua independência, mas nos anos seguintes o abandono, a degradação e os 'fantasmas' em torno do que ali se passou tomaram conta da Vila Algarve e até a Ordem dos Advogados de Moçambique tentou, sem sucesso, em 2008, fazer do espaço a sua sede.

Hoje património do Estado, já foi equacionado em 2011 ali instalar o futuro Museu da Luta de Libertação, mas como todos os outros projetos, não avançou. Mesmo Joaquim Chissano, Presidente moçambicano de 1986 a 2005, tentou, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros, o primeiro do Governo do novo país, colocar ali aquele ministério.

"Tentei utilizar a Vila Algarve. Não fui bem compreendido. E, então, depois passaram outras entidades que queriam utilizar a Vila Algarve, e o intuito era preservar o lugar. No meu tempo, era para fazer daquilo um ambiente de paz, de solidariedade, ou o próprio ministério. Como não tínhamos casas adequadas na altura, era uma maneira de preservar", recorda o antigo Presidente da Republica à Lusa.

"E sempre quis que também os combatentes da Luta de Libertação Nacional estivessem lá, como sua sede. Não conseguimos, por várias interpretações. Oxalá que haja alguém que consiga realmente restaurar e preservar esta peça histórica. É uma peça histórica muito importante", desabafa Chissano, hoje com 85 anos.

Fantasmas do passado que continuam a pairar na Vila Algarve, cujo abandono o historiador Marlino Mubai, professor na Universidade Eduardo Mondlane (UEM), não compreende.

"Está intimamente ligado à história de Moçambique do ponto de vista da luta contra a dominação colonial, fascista em particular", conta o historiador, reconhecendo que sendo um imóvel classificado o "encoraja" a acreditar na sua preservação futura, apesar de sucessivos projetos e intenções falhadas.

"Representa efetivamente um espaço intimamente ligado ao processo de construção do Estado moçambicano e à luta contra a dominação colonial portuguesa", diz.

Da parte do Governo moçambicano, nomeadamente dos ministérios da Cultura e dos Antigos Combatentes, não houve disponibilidade para comentar a situação da Vila Algarve. Contudo, Marlino Mubai admite que a falta de verbas para o setor cultural pode condicionar a nova vida do espaço.

"Pela minha experiência, a área dos museus, dos monumentos e da história não tem recebido os fundos necessários ou o patrocínio necessário. E aquele espaço pode estar a ser vítima dessa negligência, que nós temos do ponto de vista da preservação da nossa memória".

Ainda assim, sendo um local que "une" Moçambique e Portugal, Mubai defende que talvez seja mais fácil se os dois países unirem esforços, como de resto chegou a ser admitido no passado: "Pudessem reabilitar aquele espaço que lembra, efetivamente, um passado muito difícil dos dois povos, mas que, a partir daí, se forjaram novas alianças de irmandade entre os povos que hoje continuam a alimentar a diplomacia moçambicana e portuguesa".

Em declarações à Lusa, o edil de Maputo, Razaque Manhique, reconhece o problema e o "muito pensamento" que envolve a Vila Algarve que, aponta, deve "resultar num só", para preservar a estrutura.

"Sabemos que é património histórico, toda e qualquer obra que for lá feita deverá trabalhar no sentido de preservar aquilo que já lá existe. Naturalmente que quando há alteração, uma e outra propriedade se pode alterar, ou se poderá alterar, ou se poderá perder, mas o importante é que observemos todos estes aspetos para que a marca prevaleça lá", explica.

Contudo, e apesar do estado de ruína, o presidente do Conselho Municipal de Maputo prefere não vaticinar um destino para o imóvel.

"Se eu disser aqui o que pode ser lá bem feito, eu se calhar estarei a influenciar. Eu quero estar no abstrato, de forma a permitir que todo o pensamento que gira em torno daquele edifício possa ser considerado", conclui.

*** Paulo Julião (texto), Estêvão Chavisso (vídeo) e Luísa Nhantumbo (fotos), da agência Lusa ***

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