Os jornais publicavam notícias onde se jurava a pés juntos que o rei era um vendido. Todos os homens que usassem chapéu de coco eram apedrejados na rua e nos hotéis expulsavam-se hóspedes britânicos. A estátua de Camões foi tapada para que “não pudesse ver esta vergonha”. Esgotado por tanta infâmia, o explorador Silva Porto enrolou-se numa bandeira portuguesa e fez-se explodir no meio de uns barris de pólvora. O Rebate, um jornal do Porto, publicava em primeira página “é preciso trocar a pena pela espingarda” e “O regicídio passa a ser um direito”. 1890, o ano do Ultimatum britânico, foi um ano politicamente incandescente. Só para dizer mal dos ingleses, havia quem mudasse o refrão da “Portuguesa” de “Contra os canhões, marchar, marchar” para “Contra os bretões, marchar, marchar”. Não era um fervor de antipatia. Era ódio, mesmo.
A ofensa derradeira
Os Britânicos tinham sido claríssimos: “Que todas e quaisquer forças militares portuguesas actualmente no Chire e nos países dos Macololos e Machonas se retirem”. Ou Portugal desistia de conquistar os 440 mil quilómetros quadrados que separavam Angola de Moçambique ou teria de se confrontar militarmente contra a Grã-Bretanha. D. Carlos acabaria por comer e calar. Como podia um Estado arruinado como Portugal fazer frente à maior potência do planeta? Ninguém poderia ter decidido coisa diferente. Mas isso de nada interessa. Os republicanos aproveitaram este episódio para inflamar a opinião pública dizendo que Portugal tinha um cobarde e um incompetente como rei e que chegara a hora de acabar com a monarquia. Era uma falácia, claro, mas isso de nada importava na atmosfera antimonárquica que se pretendia acicatar.
A República das 6 horas
No dia 31 de Janeiro de 1891, sargentos e civis do Porto passaram das palavras aos actos. Foi a revolta menos secreta da história das revoluções. Tinha sido, aliás, combinada às claras: discutia-se nas redacções dos jornais, nos cafés, nas lojas maçónicas. No dia agendado os revoltosos saíram dos quartéis e desceram a Rua do Almada acompanhados por uma banda de Infantaria que acordou uma população espantada e estremunhada. Às sete da manhã invadiram os Paços do município e correram à varanda da Câmara para anunciar a chegada da República e o fim da Monarquia. Alves da Veiga começou um longo discurso que ninguém conseguiu ouvir nem perceber. O velho Felizardo de Lima mandou-o calar. O actor Verdial – famoso na cidade – tomou conta do momento e leu com voz bem colocada a lista dos ministros do novo governo republicano. Alguns deles nem sequer faziam ideia de que pertenciam a esta lista. Não foram tidos nem achados. Não interessa. Estava, enfim, proclamada a República em Portugal. Impetuosos, os revoltosos saíram depois dali e subiram a Rua de Santo António. Esperava-os a Guarda Municipal, que apoiava a Monarquia. Foi o caos. Sem se perceber muito bem porquê, rebentou um violento tiroteio que pôs centenas de soldados revolucionários, primeiro encurralados na Praça D. Pedro e depois em fuga. Por volta das dez e meia da manhã, tudo terminara. Foi uma República que durou seis horas bastante ridículas.
A “tola sargentada”
Os republicanos não podiam contar com o apoio popular. Muitos dos líderes socialistas opunham-se aos emproados líderes republicanos. Quando lhes foi pedida ajuda para a revolução, ela não chegou. Não dava jeito. O 31 de Janeiro de 1891 calhou a um Sábado e os operários estavam quase todos de folga. Na realidade, a desconfiança recíproca era muita. Se os republicanos gostavam de falar para o povo, também o encaravam com arrebitado desdém e mesmo antipatia. O fracasso foi, pois, clamoroso. Os seus mentores foram condenados nos meses seguintes a pesadas penas de prisão e degredo. Mas nem as condenações foram levadas a sério. Dois anos depois já todos os envolvidos estavam em Portugal e seriam amnistiados em 1900. Por essa altura já todos se riam da “tola sargentada”, como ficou conhecido o golpe. Os jornais republicanos recusaram ter alguma coisa a ver com tudo aquilo e um dos seus mentores, o capitão Leitão, pediu de joelhos e a chorar, perdão aos seus filhinhos por ter dado cabo da sua carreira. O Século tornou pública essa lamúria. Foi uma revolução sem quaisquer heróis ou mártires. Ninguém esteve do lado dos derrotados. Mesmo os jornais que tinham sido suspensos, censurados, voltaram a ser publicados como dantes.
Como não fazer uma revolução.
Fica claro que o 31 de Janeiro é um manual sobre como não fazer uma revolução. Uma revolução gorada, um golpe militar falhado, uma insurreição tão entusiasmada como pacóvia. Quando estudamos melhor o assunto percebemos que populares, maçons, comerciantes, advogados, professores, estudantes, bacharéis, proprietários agrícolas, sargentos e praças, alguns oficiais, banqueiros, médicos e desembargadores, fizeram parte desta conspiração anunciada. Todos se envolveram na urgência de mudar de vida. Não é para menos. Portugal era um país em bancarrota, mergulhado em escândalos, governada por uma elite desligada da realidade, uma classe política estridente e ineficiente, um jornalismo incandescente, comícios e atentados anarquistas corriam as ruas, mas sobretudo um quotidiano económico profundamente injusto, uma carestia de vida insuportável, uma inflação obscena, uma dívida externa monstruosa e uma mesa de jantar vazia na maioria das casas portuguesas. É preciso estômago. Num sistema dominado por Progressistas e Regeneradores, todas as dissidências eram possíveis. Socialistas desdenhavam os republicanos. Anarquistas combatiam os socialistas. Marxistas deploravam os possibilistas. Nas ruas havia lençóis pintados a dizer “Pão ou prisão”, uma boa síntese do Portugal urbano do fin de siécle.
Que temos nós a ver com o 31 de Janeiro?
Se assim é, e parece ser, o que temos nós a ver com esta revolução tão distante de nós? De tudo o que resulta desta malograda e sangrenta revolução, existe um elemento notável que avulta. O ideal progressista. Em todos estes revolucionários, qualquer que fosse o “ismo” a que pertencessem, havia esta noção de que o futuro passa por defender os direitos civis, laborais, políticos. Por todo o país se fundam associações recreativas, operárias, mutualistas que auxiliem o “órfão e a viúva”. “Uns aos outros” é o lema de muitas destas associações que garantiam aos mais pobres auxílio na doença, nos estudos, nos funerais. A revolução congrega uma inspiração progressista que a todos agita. O 31 de Janeiro representa, na verdade, um erro tão clamoroso como virtuoso. Todos os discursos, mesmo aqueles que uma verborreia cerimoniosa do século XIX torna difíceis de compreender, revelam o mesmo: uma determinação em contribuir para um Bem Comum, construir uma Nação progressista, fundada numa sólida identidade nacional, com os olhos postos num futuro genuinamente patriótico, solidário e cimentado no culto da Res Publica. Um Bem comum que trará a modernidade a Portugal. O 31 de Janeiro é uma ânsia desorganizada, um projecto sem pernas para andar, com irreconciliáveis rivalidades por resolver, mas por baixo dos seus pés corre um rio freático de idealismo genuíno que ambiciona criar novas redes de solidariedade e de mobilidade social. Todos os discursos, com maior ou menor hipocrisia, salientam a urgência de apoiar os mais frágeis e, desse modo, por causa disso, subirmos todos na vida.
O regresso de Versailles
Hoje, os multibilionários ocupam as primeiras filas de um mundo toxicamente narcisista que se está nas tintas para quem não tem dinheiro, nem oportunidades. Que despreza os mais frágeis e os mais vulneráveis. Ser pobre volta a ser, repetindo a velha falácia milionária, um defeito pessoal. Um pobre é um portador de deficiência. Não ter dinheiro advém de uma ausência de mérito pessoal. Desacreditado, todo o pobre vota no milionário que ele mesmo ambiciona ser. Nenhum outro valor lhe parece verosímil. O bairro, a comunidade, a pátria, a rua, a família, o clube, a associação, o partido representam velhas radiografias de um passado arcaico que se desintegra à nossa frente. Em seu lugar floresce a plutocracia, a teologia do dinheiro, a veneração pela fortuna fácil, o erotismo pela privatização de absolutamente tudo. Da justiça, da guerra, da educação, da saúde, da virtude. O Estado é desprezado. A coisa pública é um empecilho. Confunde-se liberdade com segregação. Cresce, poderoso, o desprezo pelo trabalho que, por tudo e por nada, se avilta. Os ricos pagam menos impostos do que os pobres e é tudo propalado como natural. O abismo entre uns e outros afunda-se cada vez mais. A miragem de uma classe média poderosa e influente esvai-se entre os dedos. Um bulionismo sôfrego transforma todos em garimpeiros enlameados até à boca. Uma distopia pecuniária embebeda tudo e todos. A hecatombe ecológica é flagrante mas ninguém se rala porque a vida é muito mais curta do que a ganância. Aceitamos como inevitável que o futuro está à venda à consignação. Teremos apenas os muito ricos e os muito pobres. O metal já não é vil. A sociedade converte-se num condomínio fechado de finórios cercados por miseráveis que imploram para entrar. Versailles está de volta.
Mr Beast não vai às aulas
Os artistas, os poetas, os cientistas, os professores resistem com todas as suas forças, mas não passam, para esta gente, de idiotas úteis. Nas escolas espelha-se, formidável, a ribanceira social. Um precipício cada vez mais cavado separa uns miúdos dos outros. A pobreza infantil alastra como uma peste descontrolada. Numa escola os miúdos percebem que aquilo que os distingue é muito mais do que aquilo que os une. E aprendem que é assim que a sua vida vai ser. Fenómenos globais para adolescentes como o Squidgame ou Mr. Beast provam que toda a honra tem um preço e que toda a virtude está à venda. Os miúdos devoram esse ópio ético. Consomem-se numa letargia induzida. Resignam-se. Conformam-se. Na turma há os colegas que podem pagar e os colegas que não podem pagar. Refeições, explicações, cadernos, livros, visitas de estudo, roupas, sapatilhas, o fosso entre miúdos é cada vez mais fundo. Com o tempo, instala-se a desistência perante a imobilidade social. Multidões silenciosas de miúdos resignam-se à pobreza. Sentem-na como uma desonra merecida. Uma vergonha que os humilha. Aprendem nas escolas, como nas ruas, que, no que dependa da “sociedade”, eles continuarão tão pobres ou mais do que os seus pais. O futuro não é de confiança. A esperança é um luxo. A dignidade risca-se numa raspadinha.
A pena e a espingarda
Recordar e compreender o 31 de Janeiro de 1891, esse malogro desajeitado, deve fazer-nos pensar no que fizemos nós desses sonhos de progresso; o que resta do contrato social; do espírito de associação; para onde chutámos o esplendor desse Portugal sonhado. Precisamos do 31 de Janeiro como nunca. Principalmente do seu falhanço estrondoso. Porque desse falhanço resultaria, mais urgente do que nunca, mais organizado do que nunca, mais inevitável do que nunca, o combate por um mundo mais justo, mais solidário. Um mundo que não permitisse que uma criança se resignasse a uma vida descalça, doente e iletrada. Esse compromisso é um imperativo da decência. Não há como negá-lo: atravessamos um falhanço. Tudo se compra. O dinheiro derrotou a integridade, destronou a cultura. A infâmia vai a votos e vence. Resta aos cidadãos desistir ou resistir. A todos nos incumbe o 31 de Janeiro de assumirmos a determinação, a coragem e a esperança de não termos, como diziam os jornais em 1891, de trocar a pena pela espingarda.