No mesmo ano em que tempestades solares desenharam auroras nos céus e provocaram inundações que destruíram cidades inteiras, como aconteceu em Valência, Patrícia Portela celebrou os seus 50 anos e os da revolução dos cravos e regressou a Portugal e à cidade de Lisboa com a sua filha, Zoë.
Isto após quase vinte anos na Antuérpia, na Bélgica, um ano em Utrecht, na Holanda, meio ano em Helsínquia, capital da Finlândia, e dois anos em Macau. Muita mudança e muito mundo na bagagem, que aqui é contado no podcast.
E foi também em 2024 que “as musas” e as circunstâncias alinharam-se para que Patrícia Portela estreasse 3 peças há muito desejadas.
A primeira peça é sobre o medo e sobre saltar muros, a partir de “As Aventuras de João Sem Medo”, de José Gomes Ferreira, em duas versões, uma belga e uma portuguesa, ambas a itinerar pelos dois países para um público mais jovem.
A segunda sobre 50 revoluções futuras, “O mercado das madrugadas”, uma peça para montar em qualquer praça e para qualquer espectador que passe e decida ficar.
A terceira peça foi sobre “Homens Hediondos”, uma espécie já em extinção mas que não sabe disso e por aí se arrasta, zombie, provocando todo o tipo de estragos. Vou querer que a Patrícia nomeie alguns e o que importa fazer para tirar esses tais zombies de cena.
Patrícia Portela busca sempre a verdade - a sua verdade - em tudo o que faz e afirma que “gosta de habitar no intervalo das coisas, pois há muito que desistiu de ser só uma coisa.”
E, nesse caminho estudou cenografia, cinema, dramaturgia, dança e filosofia em sítios tão díspares e nobres como a “European Film College” de Ebeltoft - onde conheceu o realizador Jorge Reyes, que filmou aos 18 anos as últimas imagens de Allende e as primeiras e únicas imagens da noite do golpe de estado no Chile - e estudou também na “Central Saint Martin’s”, na “Utrecht Faculty”, e na “Universidade de Leuven”, na Bélgica. Ou seja, Patrícia tem estudos. Muitos.
E descobriu muito cedo que o que escrevia poderia valer 100€ como 5000€ e que isso dependia apenas de quem fazia a encomenda e não do valor do seu trabalho. Uma reflexão muito interessante num mundo que valoriza e trata melhor quem ganha ou cobra mais.
E também há muito que Patrícia Portela defende que a maior luta continua a ser a de classes.
O assunto é debatido neste podcast, sobre a importância da luta de classes ser interseccional, porque nem toda a gente está no mesmo plano, nem nenhuma classe social.
Patrícia iniciou a sua vida nas artes performativas com espectáculos em cafés pouco (ou até mal) frequentados, em bibliotecas, no Panteão Nacional, quando ainda não estava aberto ao público, ou no Mercado da Ribeira quando ainda não era o moderno e ruidoso mercado “Time Out”.
Das suas muitas itinerâncias, Patrícia guarda na memória momentos como o de terminar o espectáculo “Flatland I em Ramallah“, na Palestina (galardoado como o melhor espectáculo do festival em 2007), com a frase “There is no place like home” e de como sentiu o público congelar. Este momento é relatado na primeira parte deste podcast.
E que mais? Patrícia recebeu duas vezes o prémio Acarte - Wasteband (menção honrosa 2003) e o Prémio Madalena Azeredo de Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian para os espectáculos “Flatland I“ (2004) (e que foi o último prémio Acarte atribuído).
Foi também Finalista do Prémio Multimédia Sonae/MNACC 2015 com “Parasomnia“, instalação sobre sono, sonho, morte e capitalismo, na qual continua a trabalhar e a apresentar. Descobriu recentemente que em todos os seus espectáculos serve comida, (não só para a mente, mas para o bucho mesmo) e que em muitos dos seus livros incluem receitas.
Importa dizer que Patrícia foi Finalista do Prémio de Grande Romance e Novela APE de 2013 com “Banquete”, e, mais recentemente, finalista do Prémio Correntes d’Escritas e Prémio Ciranda 2022 com “Hífen”, um romance que Miguel Real, do JL, considerou “histórico”, afirmando-a como uma das melhores escritoras portuguesas que o século XXI nos tem oferecido.
Com “Hífen”, Patrícia reflete sobre a relação umbilical entre distopia e utopia. E já que todas as utopias trazem no seu ventre distopias violentíssimas, com que utopias e distopias vivemos 50 anos celebrados depois do 25 de abril? Esta é uma das primeiras perguntas lançadas na primeira parte do podcast.
Patrícia revela aqui também que tem muito, muito, mesmo muito orgulho em ser cronista no JL desde 2017, e o seu sonho era voltar a trabalhar na rádio como nos seis meses que o fez em “Fio da meada” para a Antena 1. E deixa aqui esse seu desejo para pôr no sapatinho.
A artista e autora fala também de um dos seus principais papéis nos trabalhos que tem feito, o de “alcoviteira-mor”, ou agregadora cultural.
Nesse âmbito, a artista dirigiu o Teatro Viriato em Viseu durante a pandemia (2020-2022), nunca fechando as suas portas e criando novos palcos – ao telefone, no subpalco, às janelas, na rua, rejeitando as transmissões online de um arquivo e, mais recentemente, dirigiu a Rua das Gaivotas 6, projecto do Teatro Praga (2023-2024).
Um capítulo terminado no final deste ano deixando, entre memórias muito felizes e espectáculos inesquecíveis, aulas gratuitas de “tai chi” para residentes do bairro e artistas da casa, e deixa mais esta porta aberta convidando todos os que passam a lá entrar.
Patrícia conta como termina este ano um ciclo e vai iniciar a transformação naquilo que defende com militância, mas segundo ela “nem sempre pratica, nem é o melhor exemplo”.
No fundo, a autora está a querer responder à famosa frase de Tolstoi: “Todos pensam em mudar o mundo, mas ninguém pensa em mudar-se a si mesmo.” Ou, de outra forma, Patrícia segue à risca a máxima grega “transforma o mundo sem estrondo, mas com esperança.”
É por aqui que esta conversa em podcast arranca.
A segunda parte desta conversa fica disponível na manhã deste sábado.
Como sabem, o genérico é assinado por Márcia e conta com a colaboração de Tomara. Os retratos são da autoria de José Fernandes. E a sonoplastia deste podcast é de João Ribeiro.