
Berlim, abril de 2023. Num almoço com Angela Merkel e um pequeno grupo de convidados, discutia-se a Rússia, a guerra na Ucrânia e o papel de Vladimir Putin. A certa altura, alguém perguntou: considera Putin uma pessoa inteligente?
Seguiu-se o silêncio. A ex-chanceler alemã refletiu uns segundos antes de responder — tempo suficiente para que, entre os meus botões, se iniciasse a congeminação de uma eventual resposta: como é possível que um líder escolha empenhar o capital político, militar e económico do seu país numa guerra pelo controlo do Mar Negro, quando o verdadeiro futuro da Rússia está a norte — no Ártico?
Essa reflexão levou-me a pensar na oportunidade geopolítica sem precedentes que se abre hoje à Rússia com o degelo acelerado do Ártico. Nas próximas décadas, o recuo do gelo marítimo poderá tornar navegável, talvez durante todo o ano, a Passagem do Nordeste — uma rota ao longo da costa siberiana que encurta em cerca de 15 dias as ligações marítimas entre a Ásia e a Europa, desviando tráfego do Canal do Suez e redesenhando o mapa do comércio global.
Um estudo recente de Heuzé e Jahn (Nature Communications, 2024) aponta que, mesmo em cenários moderados de aquecimento, esta rota poderá tornar-se sazonalmente navegável sem auxílio de quebra-gelos até 2030 — antecipando, em muito, a integração plena do Ártico nas cadeias logísticas mundiais. Entre Xangai e Roterdão, por exemplo, a duração da viagem pode cair de 35 para 20 dias, com uma poupança estimada entre dois a três milhões de euros por navio de grande porte.
Neste novo tabuleiro, o Ártico perfila-se como o Mediterrâneo do século XXI: um corredor vital de trocas entre China, Japão, Estados Unidos, Canadá, União Europeia — e, claro, a própria Rússia, que detém a maior linha costeira da região. Antevêem-se inevitáveis tensões em torno de rotas, recursos, zonas económicas exclusivas, mineração e expansão da atividade primária em territórios historicamente congelados e inabitáveis. Tensões que poderão assumir contornos militares ou, em alternativa, ser reguladas no quadro do multilateralismo e do primado da lei.
É nesse contexto que a decisão de Vladimir Putin de lançar uma guerra de invasão contra a Ucrânia se revela não apenas ilegal, criminosa e injusta, mas também estrategicamente desajustada. Num mundo em transição, Putin compromete o futuro da Rússia num conflito pelo controlo do Mar Negro — o único mar navegável durante todo o ano ao qual historicamente teve acesso — e, em vez de se afirmar como protagonista na nova geoeconomia do Ártico, afunda o país numa aventura imperial que consome recursos, mina a credibilidade externa e compromete a sua capacidade de adaptação ao século XXI.
Empedernidos negacionistas climáticos, como Donald Trump, parecem ter percebido o que está em jogo. O seu súbito interesse pela Gronelândia ou pelo Canadá, que muitos tomaram por mais uma excentricidade presidencial, é na realidade uma reação abrutalhada à nova geopolítica do degelo. A progressiva abertura do Ártico está a redesenhar o mapa do Hemisfério Norte, não só pela emergência de novas rotas marítimas, mas pelo acesso direto a recursos estratégicos.
Segundo estimativas do Serviço Geológico dos Estados Unidos, a Gronelândia poderá conter até 1,5 milhões de toneladas de óxidos de terras raras — o equivalente a cerca de 1 a 2 % das reservas conhecidas. Mas se considerarmos apenas os depósitos prontos para exploração, ou os elementos mais procurados como o neodímio, praseodímio, disprósio e térbio, a importância da Gronelândia aumenta para 18 % das reservas mundiais.
Por outro lado, o Canadá soma importantes jazidas de níquel, lítio, cobalto e grafite, fundamentais para a produção de baterias, semicondutores e sistemas de inteligência artificial. Numa altura em que a China controla mais de 80 % do processamento global de terras raras e domina os circuitos de abastecimento de minerais críticos, o Ártico representa uma oportunidade única para diversificar o acesso a matérias-primas indispensáveis à economia digital do século XXI.
Se no Ártico a habitabilidade tenderá a melhorar, alimentando novas ambições territoriais e económicas, o panorama global é, no essencial, inverso. Nas regiões tropicais e subtropicais — e de forma particularmente dramática em muitas ilhas oceânicas ameaçadas pela subida do nível do mar —, as alterações climáticas traduzir-se-ão na perda progressiva das condições mínimas para uma vida com qualidade. Esta redistribuição planetária da habitabilidade não será neutra: provocará fluxos migratórios em larga escala ao longo da latitude, disputas por recursos básicos e conflitos crescentes pela sobrevivência.
A perplexidade perante a incapacidade de antecipação de Putin foi, afinal, o que me ocorreu, em silêncio, naquele almoço em Berlim, ao ouvir a pergunta dirigida a Angela Merkel. Não revelarei, por reserva, o que ela respondeu. Partilho, no entanto, a memória desse episódio porque ilustra um risco cada vez mais evidente: quando os líderes continuam a interpretar o mundo com base em mapas antigos, podem condenar os seus países a repetir os erros do passado, em vez de os preparar para os desafios do futuro.