Se recuarmos à Atenas de Péricles e ao século V a.C., observamos o que terá sido o princípio de uma ideia de democracia com a participação dos cidadãos na vida política. Não obstante, metecos, mulheres e escravos não tinham direito à tal cidadania. No caso dos metecos, ou estrangeiros, na tal Atenas de Péricles, a historiografia reconhece a sua importância no dinamismo da Pólis, nomeadamente do ponto de vista económico, dedicando-se ao comércio e às atividades artesanais.

Participavam nas atividades religiosas, pagavam impostos e eram obrigados a prestar serviço militar, custeando o seu próprio equipamento, mas não eram cidadãos de pleno direito.

Parece que, do período clássico grego não herdamos apenas o conflito ocidente-oriente – recordando o terrível embate com os persas – continuando, na pós-modernidade a discriminar-se o dito estrangeiro.

Helena Marques

“O Milagre do Escravo”

Talvez a História da Antiga República da Sereníssima, da rainha do Adriático, pela exceção da sua condição geográfica de fragmentação insular, seja diferente e a pintura, por exemplo, abre-nos a porta a essa leitura. L'Accademia, a Academia de Belas Artes de Veneza apresenta, da sua coleção permanente, por exemplo, “O Milagre do Escravo” (1548), obra-prima de Tintoretto (1518-1594) e do Renascimento veneziano, em que São Marcos, padroeiro da cidade, liberta um escravo.

A pintura representa uma cidade multicultural, em que a profusão de influências e a convergência que o comércio proporcionou, a determinam, desde sempre, como oásis do belo absoluto e, sobretudo, do belo que combina todas as nossas identidades e que, em bom rigor histórico, nos vêm dos quatro continentes e do tal conceito relativo de estrangeiro que nos faz pertencer a todos os lugares e a lugar nenhum.

Da arquitetura de diálogos entre o bizantino, o moçárabe e a exuberância dos palácios dos séculos XVII e XVIII, Veneza espelha na água que a inunda a certeza do complexo.

Helena Marques

Veneza: a cidade de génios

A sumptuosidade da cidade, a sua riqueza, contrastante com o labirinto de becos, pontes e ruelas, justifica a confiança do veneziano, que se vende como o mais conhecedor de tantos ofícios, que vão da construção naval à confeção da piadina, passando pelos curtumes ou pelo vidro, de murano, claro!

A coincidência de Veneza ser, também, a cidade de génios como Bellini (1430-1516), Ticiano (1490-1576), Veronese (1528-1588), Canaletto (1697-1768) ou de Vivaldi (1678-1741) e das suas imortais Quatro Estações, poderia ser suficiente para justificar o nascimento, em 1895, da bienal de arte mais antiga do mundo, tornada no mais relevante evento do setor.

Em plena Revolução Industrial e com o processo de unificação da Itália concluído em 1871, Veneza oferecia, até pela mitificação da sua histórica república, o cenário idílico para que o mundo mostrasse o que de mais relevante de faz nas artes plásticas e visuais.

Helena Marques

60 anos da Bienal de Veneza

La Biennale di Venezia assinala este ano a sua edição 60, assinalando-se interrupções apenas durante a II Guerra Mundial e como consequência da Covid-19.

E, em 60 edições, a bienal de arte (que intercala a sua organização com a de arquitetura) foi sabendo ser reflexo e exemplo do seu tempo e se, em 2022, tínhamos tido, pela primeira vez, uma mulher italiana na direção artística do evento, em 2024, temos a estreia de um sul-americano: Adriano Pedrosa (n.1965).

“Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere” (Estrangeiros em todo o lugar) é o tema proposto pelo curador brasileiro que muda o ponteiro e dá destaque a um conjunto alargado de artistas e coletivos do dito Sul Global e, muito em particular, sul-americanos e indígenas, muitos deles não integrados no sistema da arte contemporânea vigente e até conotados com o artesanato e com uma expressão que poderíamos considerar como naïf.

O conceito do que é ser estrangeiro chega-nos através da exploração das questões da pós-memória e do pós-colonialismo, das políticas sobre as migrações, das desigualdades sociais e preconceitos sofridos por questões de género, raça ou orientação sexual, com uma tónica muito particular à crítica a uma visão do mundo (e também do mundo da arte) que se revela excessivamente ocidental ou então com um certo paternalismo dos países europeus, outrora colonizadores, em relação aos demais, outrora colonizados.

Adriano Pedrosa coloca o dedo na ferida e reescreve todos os limites entre o que é arte e artesanato, entre a cultura oficial e de elite e tudo aquilo que são processos de expressão cultural e artística transversais a qualquer ser humano e comunidade.

Helena Marques

O Pavilhão da Santa Sé, com curadoria do Cardeal Tolentino Mendonça

Participam 88 países, sendo esta a mais extensa participação de sempre, com muitos estreantes e a bienal organiza-se pelo Giardini, Arsenal e com representações nacionais em diversos locais espalhados pela área mais central e histórica de Veneza e, em 2024, especial destaca para o Pavilhão da Santa Sé, com curadoria do Cardeal Tolentino Mendonça e que ocupa a prisão feminina na ilha da Giudecca.

No circuito sugerido começado pelo Giardini, local que guarda a memória dos pavilhões construídos por Mussolini depois de 1924 e que continuam afetos aos mesmos países da versão original.

O Pavilhão da Bienal, cuja fachada de inspiração neoclássica se viu transformada por uma grande pintura mural do coletivo MAUKU, provenientes das margens do Rio Jordão, no Brasil, próximo da fronteira com o Peru, afirma os princípios curatoriais e distingue, desde logo, um núcleo de artistas contemporâneos do núcleo histórico, recordando sempre que a agulha está para sul e que seremos desafiados a pensar, verdadeiramente global e a descolonizar as nossas mentes.

Helena Marques

Giulia Andreani, o pavilhão de Espanha e o do Egito em destaque

Destaque, por exemplo, para a pintura de Giulia Andreani (n.1985), italiana a residir em Paris e que recupera a memória da condição da mulher, da sua invisibilidade doméstica e de como o regime fascista a confinou.

Nos pavilhões por países, merece-me destaque a Espanha que, pela primeira vez, apresenta uma artista não-espanhola: Sandra Gamarra Heshiki (n.1972), natural do Peru e que apresenta uma instalação site specific intitulada “Migrant Art Gallery” e que é um murro no estômago sobre as relações entre quem explora e quem é explorado e sobre os impactos sociais, ambientais e culturais dessa exploração, de forma perene e na definição das identidades.

Uma produção que combina a construção do arquivo, com a pintura, repleta de referências da História da Arte, misturada com a imagética associada aos povos originários, havendo palavra e muito ativismo político.

E porque não o pavilhão do Egipto que coloca em perspetiva a ideia de estrangeiro, recuperando a guerra de independência contra os britânicos, que só se consuma em 1922. Wael Shawky (n.1971), natural de Alexandria, combina, na sua prática, o cinema, o teatro e a escultura, oferendo-nos uma viagem visual e sonora fascinante.

Depois de um mergulho sobre os vários exercícios de reparação e representativa que os vários países procuraram fazer, segue-se para o Arsenal, antiga zona industrial de Veneza dedicada à construção naval, hoje transformada para a bienal. O pavilhão central, com curadoria de Adriano Pedrosa, segue os pressupostos do que tínhamos visto no Giardini mas ganha uma escala monumental.

Helena Marques

O coletivo Aravani Art Projec e o estreante Benim

Do muito a destacar, porque não o coletivo Aravani Art Project, feito de mulheres trans indianas. No exterior, sobre o lago, os Claire Fontaine, coletivo ítalo-britânico, escreve, com luz, o tema da bienal nos idiomas de todos os países representados e dali também avistamos uma obra, de 2019, de Lorenzo Quinn (n.1966) com as mãos a simbolizarem a força do trabalho e a união dos trabalhadores que também ergueram Veneza.

A cidade e o seu espaço público vão guardando estas memórias de outras edições da bienal. No Arsenal destaque para a República do Benin, país que participa pela primeira vez e que traz o tema da restituição dos bens culturais saqueados pelos colonizadores e exploradores ocidentais, propondo uma inteligente leitura sobre o papel dos objetos em contexto para a afirmação das identidades locais e denunciando o tal paternalismo dos países detentores dos chamados museus universais.

Helena Marques

A participação portuguesa

Por último, obrigatória uma passagem pelo Palazzo Franchetti onde está a participação portuguesa e conhecer o jardim crioulo de Mónica de Miranda, Sónia Vaz Borges e Vânia Gala, as artistas e curadoras de “Greenhouse”.

Portugal alinha-se com os temas dominantes nesta edição da Bienal de Veneza e promove um exercício de reparação histórica e um convite a pensar como a herança colonial está enraizada, denuncia um racismo endémico e condiciona o acesso a todos ao tal elevador social.

Até 24 de novembro de 2024, Veneza, que é sempre Veneza e vale nem que seja para nos perdermos em amores na Praça de São Marcos, uma das mais encantadoras do mundo, também foi o palco de um debate urgente sobre o que é ser estrangeiro, o que é ser migrante e sobre tudo o que não é normativo e que, nos dias que correm, parece indutor de tantos ódios e intolerâncias.

Veneza é um convite a ouvir o outro e, talvez por isso, também tenha sido esse o tema do pavilhão da Itália (no Arsenal) e no projeto “Due qui/To Hear” de Massimo Bartolini (n.1962).

Helena Marques