
O percurso ilustre de Leonardo Jardim é reconhecido no seio do desporto-rei, com inúmeras conquistas alcançadas além fronteiras. Porém, o sucesso do técnico madeirense não passou, única e exclusivamente, por um belo trabalho realizado individualmente, mas também pela obra desenvolvida pelos restantes membros da equipa técnica, seguindo o modus operandi de um núcleo bem estruturado.
Miguel Moita, dono da UEFA Pro Licence, acompanhou o experiente treinador durante 15 anos, tendo conquistado títulos na Grécia, na França e na Arábia. Contudo, depois de múltiplas experiências no estrangeiro, o mister de 41 anos procura agora um desafio a solo, dentro do território luso, garantindo, em conversa com o zerozero, que está preparado para abraçar uma nova aventura em termos profissionais.
zerozero: Onde é que surgiu então esta paixão pelo futebol? Quais os fatores que o levaram a enveredar por esta vertente técnica?
Miguel Moita: Eu sempre gostei de jogar futebol, mesmo não tendo atingido um nível muito elevado. Sempre foi o meu desporto de paixão. Já quando assistia a jogos, olhava para o mesmo de uma forma diferente. Nunca foi na base do grito, nem com aquele sentimento de adepto fervoroso. Nunca tive essa loucura. Quando entrei para a Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, o meu desejo passava mais por ser professor de Educação Física. Identificava-me bastante com o estilo e com a forma relaxada como lecionavam.
No entanto, eu conheci muitos professores interessantes ligados ao futebol, uma vez que eu segui Metodologia do Futebol como especificidade. Professores como o Vítor Frade o, Júlio Garganta e o José Guilherme fizeram-me olhar para a modalidade de uma forma diferente. Como tal, a minha ligação ao futebol começou a florescer, bem como aquele bichinho de ser treinador, de pertencer a uma equipa técnica e de estar no dia-a-dia do treino. No terceiro ano da universidade, eu tenho a minha primeira experiência como como treinador principal na formação. Acabei por ter outras paragens que me conquistaram e que me levaram para esta área.
zz: Como é que surgiu então a oportunidade de rumar ao GD Chaves, equipa que atuava na II Liga?
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MM: Eu conhecia uma pessoa chamada Bruno Pereira, que tinha sido treinador adjunto do Leonardo Jardim e que agora treina nos Emirados Árabes Unidos. Ele estava a fazer o Mestrado na faculdade e acabámos por nos conhecer nessa altura. Entretanto, ele seguiu para a Madeira e o Leonardo veio para o continente sozinho e precisava de alguém que lhe fizesse as análises durante a fase final da Segunda Divisão B. Ele entrou no projeto com o intuito de subir o clube. Eu comecei então a fazer as observações para o Leonardo, mas sem o conhecer. Mandava-lhe tudo por e-mail.
Eles não conseguiram subir nessa reta final, mas o Leonardo ficou para o ano seguinte. Eu acabei por entrar na escolhas do mister, sendo a terceira opção. Eu estava a acabar de sair da faculdade, a terminar a Monografia. No entanto, acabei por aceitar a proposta e fui para Chaves para começar o meu percurso como profissional. Eu acumulava várias funções. Para além de ser Preparador Físico, era analista da própria equipa, analista do adversário, treinador adjunto dos Juniores e treinador adjunto da equipa principal.
zz: Depois, acabou por acompanhar o mister Leonardo Jardim no Beira-Mar....
MM: Sim, não havia tanta verba e, como tal, faltava um profissional mais multifacetado. Precisavam de alguém que conseguisse fazer várias coisas. Felizmente, correu tudo bem. Subimos de divisão, tanto no GD Chaves como no Beira-Mar.
zz: Olhando para as responsabilidades mais concretas de um analista, qual a importância de ter alguém talhado, única e exclusivamente, para esta posição no futebol moderno
MM: Acho que é cada vez mais uma função importante. Cada vez mais, vai ao detalhe. O futebol hoje em dia é cada vez mais complexo. As equipas trabalham muito mais o lado tático e estão cada vez mais diversificadas. Há muito mais facilidade e muito mais versatilidade dos treinadores para alterarem as formas de jogar, bem como os próprios sistemas táticos. Um dia podem jogar em 3-4-3 e no outro dia atuam num 4-3-3, por exemplo. O analista é fundamental para detetar todos estes detalhes, de forma a conseguir auxiliar o treinador principal.
Numa primeira instância, ajuda a fazer uma filtragem do que é realmente o mais importante. Posteriormente, entrega uma informação bastante concreta e já muito objetiva.
Eu olho sempre para um treinador como uma pessoa que, para além do treino, tem muito mais coisas em que pensar. Um treinador é cada vez mais um manager, seguindo o ideal do Alex Ferguson. Um treinador está muito mais preocupado com aspetos ligados às relações humanas e à mentalidade dos jogadores, se estão ou não estão com a cabeça no sítio. Estes pormenores levam a que os treinos e as semanas corram bem.
zz: Após a ascensão do Beira-Mar ao principal escalão do futebol nacional, em 2009/10, o plantel acaba por ser reestruturado no ano seguinte. Chegaram ao clube vários jogadores mais jovens, como o Sérgio Oliveira, o Wilson Eduardo e, até mesmo, o Jan Oblak, que acabaram por ter carreiras repletas de sucesso. Na época, já dava para perceber o potencial destes atletas?
MM: Sim, deu logo para perceber que eram jogadores com qualidade. Eu queria também relembrar aqui o Ishmael Yartey, com formação no Benfica. Alguns atletas poderiam ter mesmo chegado a outro patamares, mas existe sempre um fator que as pessoas têm que contar. É impossível ter a certeza se os jogadores vão ou não vingar no futuro. Dá logo para perceber se eles têm qualidade, mas depois o aspeto mental é muito importante.
Eu costumo dizer que os os treinadores podem ajudar, podem participar na formação, mas a última palavra é dos intervenientes. Depende das escolhas que tomam no dia-a-dia, da mentalidade que empregam nos treinos e nos jogos, da capacidade de lidarem com a vida extra futebol, sem recurso a excessos. Claro que a qualidade técnica e a tomada de decisão também são fatores que distinguem um jogador de nível mundial para os demais.
zz: No reverso da medalha, acredito que alguns técnicos depositam as suas fichas em determinado jogador, que acreditam que vai chegar longe, mas depois alguns fatores, internos ou externos, impedem que tal aconteça...
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zz: Depois de um excelente ano no SC Braga, onde os arsenalistas acabaram por se qualificar para a Champions 2011/12, a equipa técnica segue para a primeira aventura fora de portas, no Olympiacos. Foi fácil a adaptação a um contexto novo, completamente distinto daquilo que estavam habituados?
MM: Foi realmente a nossa primeira aventura no estrangeiro. O Olympiacos é um clube grande, que representava a maioria dos adeptos na Grécia. Nós sentimos esta intensidade, tanto no estádio como nas visitas dos adeptos às instalações do clube. Sentíamos a grandeza da instituição no apoio que recebíamos constantemente e na grande pressão que tínhamos para obtermos resultados. No que toca à ambientação, eu sou uma pessoa que se adapta bastante bem a outros contextos distintos. Gosto de me envolver na cultura de outros países. Como tal, acho que foi algo fácil.
Em termos de de futebol, o que eu sentia era que havia mais discrepância na qualidade das equipas. Sentia que o campeonato era menos equilibrado do que o campeonato português, que era a realidade que nós podíamos comparar na altura. Também gostei muito de viver em Atenas, uma cidade muito interessante. Acabamos por ir embora, numa situação em que sabíamos que algo mais se passava, porque nós estávamos em primeiro lugar do campeonato, com dez pontos de avanço para o segundo classificado. Valores mais altos se levantaram.
zz: A paragem que se seguiu foi então o Sporting. Os leões viviam um período atribulado, com o sétimo lugar obtido em 2012/13 a ir de encontro com este ideal. Contudo, a vossa equipa técnica chega e altera o paradigma do emblema de Alvalade, que, de forma surpreendente, terminou a campanha seguinte numa honrosa segunda posição. O que é que sentiu que faltou para não ter sido possível erguer o troféu?
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O nosso mercado baseou-se em jogadores completamente desconhecidos. Fomos buscar o Slimani e o Montero, jogadores que não atuavam na Europa e que precisaram de tempo para se adaptar. O Carlos Mané, por exemplo, veio da equipa B para nos ajudar. Por isso, face a este contexto, eu acredito que nós tivemos sucesso. Conseguimos qualificar a equipa para o playoff da Liga dos Campeões.
A verdade é que tínhamos um grupo fantástico. Tínhamos jogadores mais experientes, como o Diego Capel e o Marcos Rojo, que levavam a que o ambiente fosse muito interessante. O Sporting funcionava muito como uma família. Lembro-me que na altura o Frederico Varandas, atual presidente, era o nosso médico. Foi um dos melhores que eu apanhei. Também foi o primeiro ano do Bruno de Carvalho, que acabou por transmitir uma imagem de maior força. Tudo se conjugou para uma campanha bastante positiva.
zz: No Monaco, o técnico Leonardo Jardim escreveu uma das páginas mais bonitas da sua carreira, sendo campeão da Ligue 1 na temporada 2016/17. Porém, você não acompanhou o treinador madeirense durante o respetivo ano memorável. O que aconteceu?
MM: Eu estive envolvido no projeto do Monaco nos dois primeiros anos do Leonardo Jardim. Porém, eu fui, sem razão aparente, despedido, juntamente com mais dois portugueses que estavam na estrutura do clube. Não houve qualquer explicação por parte da direção para o sucedido. No final da segunda época, nós perdemos o segundo lugar e ficámos em terceiro.
No ano em que o Monaco foi campeão, aconteceu a consolidação da maturidade que eu falei anteriormente no Sporting, que era necessária e que não havia face ao Benfica.
Nós tínhamos jogadores como o Bernardo Silva, como o João Moutinho, como o Lemar, como o Andrea Raggi, que foram amadurecendo e crescendo durante o processo. O Radamel Falcão também regressa nessa época, porque estava emprestado ao Manchester United e ao Chelsea. O Mbappé também acaba por aparecer de rompante. Todos estes fatores culminaram num ano fantástico.
zz: A verdade é que esse ano mágico do Monaco nota-se que chegou fruto de um grande trabalho realizado a priori...
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MM: Sim, acho que isso equivale a 60/70 por cento do processo. O Leonardo ganhou mais força com a chegada de alguns reforços que pediu. Acho que a entrada do Falcão foi muito importante. Eu costumo dizer que o Falcão em dez oportunidades, faz oito. Qualquer outro avançado, vai fazer apenas cinco. O Falcão era uma coisa impressionante. Ele simplesmente inventava situações de golo. A segunda linha também era muito boa.
De recordar que nesse ano, o João Moutinho nem era o titular. Era um jogador que ia rodando com o Bakayoko e com o Fabinho. O Leonardo Jardim pensou que era necessário dois médios que fossem capazes de segurar o barco defensivamente, uma vez que haviam muitos atletas no onze com pendor ofensivo, como os laterais, o Mendy e o Sidibé.
zz: 2001 marca o início da aventura no Médio Oriente, com as passagens no Al-Hilal, no Al Ahli e no Al Rayyan. Sabendo das barreiras linguísticas que existem face ao contexto europeu, surgiram obstáculos no que toca à comunicação ou foi fácil transmitir a vossa mensagem?
MM: Eu acho que há sempre obstáculos. Quando temos que ter um tradutor para passar a nossa mensagem, nunca será exatamente como queremos, independentemente da pessoa ser impecável e super competente. Tem a ver, única e exclusivamente, com a emoção. A cópia nunca é igual ao original. Nós tivemos esse problema no Olimpiacos. A mensagem passa, mas a verdade é que sentimos que nunca é algo orgânico por esta via alternativa.
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zz: O que é que motivou o corte de ligação profissional com a equipa técnica de Leonardo Jardim? Foi algo repentino?
MM: Depois de termos ganho a Liga dos Campeões Asiática, depois de termos sido campeões nos Emirados Árabes Unidos, acabámos por fazer também uma época fantástica no Al-Rayyan. Não conseguimos ser campeões por pormenores, porque era uma equipa nova, com muitos jogadores que se estavam a adaptar. Num exemplo parecido ao do Sporting, conseguimos que eles fossem do nono lugar à segunda posição, que permitiu o acesso à Champions Asiática.
Ao que parece, as coisas não foram assim entendidas pelo clube, que decidiu rescindir com o Leonardo Jardim. Não foram corretos com os assistentes, não nos comunicaram nada. Queriam que nós saíssemos quase de mãos a abanar. Eu acabei por não aceitar o que eles propuseram. Depois de quase 15 dias sem ter nenhum contacto da parte deles, eu tive de meter uma ação na FIFA. Entrei com um advogado e o processo ainda está a decorrer.
«Estava a custar mudar de vida todos os anos»
MM: Liguei ao Leonardo e disse-lhe que se houvesse mais uma aventura deste género no Médio Oriente, que eu não o iria acompanhar. A base familiar esteve na génese da decisão. Estava a custar estar sempre a mudar de vida todos os anos. O futebol é um pouco isso, mas o estado emocional das minhas filhas estava a ser abalado por estas constantes mudanças na Arábia. Não esquecer que eu tive que mudar tudo à pressa, porque eu tinha a minha vida toda organizada no Catar e só no último dia de férias é que eu fiquei a saber que o clube não ia ficar comigo. Como tal, tive que passar a minha vida toda para Portugal num estalar de dedos. Quero aproveitar para apostar um pouco na minha carreira aqui, a médio prazo. Estou a tentar entrar num projeto a solo como treinador principal, mas nunca rejeitaria uma situação como adjunto de uma Primeira Liga. Sinto que estou preparado para qualquer uma dessas duas situações.
zz: Seguindo essa mesma ideia, qual é o próximo objetivo que tem em mente? Passa por procurar uma equipa da II Liga ou da Liga 3?
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MM: Eu sempre fui alguém que, enquanto assistente, olhava para o treinador principal e me punha a fazer o exercício de 'o que é que eu faria?'. Porque sabemos, quer queiramos quer não, que as funções são diferentes. Enquanto treinador principal, a exposição é maior. A verdade é que nem sempre concordamos com as ideias do treinador principal. Muitas vezes, pensava: 'gostaria de pôr as minhas ideias em prática'. Eu tenho acompanhado bastante este ano a Liga 3 e a II Liga. Vejo que são campeonatos competitivos. Causa-me interesse porque há de facto qualidade. Há jogadores que vêm de ligas superiores para acrescentar força à competição. Também há jovens treinadores a tentar impor as suas ideias. É, sem dúvida, um patamar que eu gostaria de me lançar como treinador principal.
Sinto alguma relutância, e muita gente me tem partilhado isto, na aposta em treinadores sem experiência como treinador principal, sendo que há sempre umas exceções, com determinadas networks que eu não tenho. Desta forma, não posso descurar a ideia de integrar o staff de um conjunto do principal escalão português.
zz: Acredita que a vasta experiência que foi acumulando pode ser determinante para a eventual nova missão?
MM: Eu acho que o facto de ter andado fora não será determinante. Determinante será a relação que eu possa ter com os vários intervenientes numa equipa. Serão importantes as vivências que eu tive, tanto na minha formação como na minha aprendizagem com o Leonardo durante estes 15 anos. Eu aprendi mesmo muito com ele. As passagens pelo exterior são sempre contextos que te fazem crescer, que te obrigam a falar uma língua diferente, mas a preparação vai muito além disso. As aptidões que eu fui desenvolvendo, como a liderança e a capacidade de motivação, também são essenciais para eu saber que estou preparado para abraçar uma nova aventura. Sou uma pessoa positiva, que gosta de pensar à frente e de resolver problemas.
Já no que toca à minha ideia de jogo, gosto de uma estratégia equilibrada, mas agressiva, tanto no momento ofensivo como defensivo. Sou uma pessoa que gosta de dar liberdade aos jogadores, principalmente do meio-campo para a frente. Gosto que exista criatividade em prol do coletivo. Para além disso, gosto muito de olhar nos olhos, de tratar todos com respeito para também ser respeitado. Procuro ter o máximo de coerência nas minhas decisões para que tudo flua com naturalidade.