
O 14 de julho de 2024 não foi dia de celebração nacional francesa para a cúpula do futebol do país. Na verdade, foi data de conflito entre homens-fortes da Ligue 1, ambos estrangeiros.
Para discutir a questão dos direitos de transmissão televisiva do principal campeonato de França, foi organizada uma videochamada entre os líderes de todos os clubes. Como vendo sendo normal há mais de uma década, Nasser Al-Khelaifi, presidente do PSG e do beIN Media Group — que detém os direitos da Ligue 1 —, liderava a discussão, mas enfrentava a oposição de John Textor, o dono do Lyon.
“John, cala a boca, não entendes nada. És um cowboy que veio para aqui vindo de não sei de onde para falar connosco”, atirou o catarense ao empresário dos Estados Unidos, que acusou Al-Khelaifi de ser um “tirano”. A tensa reunião foi contada por diversos órgãos de comunicação social, como o “L'Équipe" ou a “RMC Sport”.
O episódio traduziu a conhecida animosidade entre Nasser Al-Khelaifi, homem cheio de tentáculos de influência no futebol francês e não só, e John Textor, o empresário de 59 anos natural do Missouri que é dono da Eagle Football Holdings, a qual detém posições maioritárias no Lyon, Crystal Palace, Botafogo e Molenbeek. O primeiro representa o poder estabelecido, com fortes ligações à UEFA, à associação europeia de clubes, ao mundo das transmissões televisivas, ao padel ou ao ténis (é presidente da federação do Catar e vice-presidente da federação da federação de ténis asiática para o oeste do contiente); o segundo é o recém-chegado que, depois de 36 anos de Aulas, procura abanar os alicerces do establishment.
A rivalidade entre os dois foi a jogo na 23.ª ronda da Ligue 1. O Lyon, agora orientado por Paulo Fonseca, recebeu o PSG. Antes do apito inicial, Textor subiu ao relvado com um chapéu à cowboy, sorridente e bem-disposto. Acenou para as bancadas, numa óbvia referência à forma como foi tratado por Al-Khelaifi.
O encontro saldou-se por uma vitória do PSG por 3-2, confirmando o grande momento dos parisienses, que somam 17 vitórias e um empate nos derradeiros 18 encontros. Com mais 13 pontos que o Marselha, o quarto título seguido — e o 11.º em 14 temporadas desde a chegada do dinheiro do Catar — parece uma questão de tempo.
Após o encontro, Textor explicou o uso do chapéu: “Não sou um cowboy, nem sei como montar a cavalo. Mas achei que seria divertido utilizar um chapéu”, disse o empresário.
A provocação do dono do Lyon culminou várias horas em que os ataques de Textor ao PSG dominaram a agenda mediática. Na antevisão ao jogo, uma entrevista dada ao jornal espanhol “AS” renovou as críticas que Textor, que chegou a estar interessado em investir no Benfica, dirige ao modelo financeiro do clube da capital.
Para o líder do Lyon, o que o Catar faz com o PSG “não é um investimento”, mas sim “uma subvenção”. “Claro que não é legal que um Estado subvencione um negócio na União Europeia se isso distorce a concorrência”, considera Textor, que diz que o PSG é “um negócio que perde dinheiro anualmente”, servindo a tal subvenção do Catar para “cobrir as perdas de um negócio insustentável”, não estando “o capital disponível de outra forma por parte de investidores”.
“O Estado do Catar financia o PSG, anualmente, em 100, 200 ou 300 milhões de dólares, o que arrasa qualquer tipo de concorrência”, descreve Textor, que pede que se apliquem as leis da União Europeia. “As regras deveriam ser para todos”, atira.
John Textor, também ao “AS”, anunciou que vai apresentar, à comissão jurídica da Ligue 1, um pedido para que a questão do modelo de financiamento do PSG seja analisada. “Caso não surja uma resposta satisfatória, levaremos o caso à Comissão Europeia”, assegura.
Já em janeiro, Textor descrevera a liga francesa como “um campeonato louco dominado por um homem". Sobre a influência de Al-Khelaifi, o dono do Lyon nota que “há uma relação entre o Catar e França que vai além do futebol”, apontando para os “conflitos de interesses” do presidente do PSG, que “abusa” ao ser, ao mesmo tempo, líder de um clube e presidente de um canal que detém os direitos de transmissão do campeonato. “Nasser intimida as pessoas quando estas tentam apresentar novas ideias”, denunciou ao “AS”.
Os adeptos do Lyon parecem concordar. Durante o desafio diante dos parisienses, foram mostrados cartazes onde se lia “máfia do Catar”, acusava os líderes da Ligue 1 de serem “subordinados” e se apelava: “Nasser, sai do futebol francês”.
“Nada disto é pessoal”, assegurou, no final do jogo, Textor. “É, simplesmente, sobre justiça. Não estou a lutar apenas pelo Lyon, mas por toda a liga francesa. Não podemos ter o mesmo campeão durante 20 anos seguidos”, indicou.
Mas não só Al-Khelaifi se queixa dos métodos de Textor. Um presidente de um clube do campeonato gaulês, que não se quis identificar, disse à “RMC Sport” que estas ações do empresário servem para “desviar atenções” do “caos absoluto e para a incompetência com que se gerem os seus clubes”.
Desde que Textor assumiu o controlo do Lyon, o clube não foi além do 6.º lugar na época passada, a mesma posição que ocupa nesta campanha, o que valeu a saída de Pierre Sage e a chegada de Paulo Fonseca, que leva duas vitórias em quatro encontros.
No Botafogo, 2024 trouxe glória máxima, com os títulos do Brasileirão e da Libertadores, mas a saída de Artur Jorge, em 3 de janeiro, levou os cariocas para a instabilidade: ainda não foi contratado um treinador e, nestes quase dois meses de vazio de liderança técnica, a equipa perdeu a Supertaça do Brasil para o Flamengo, perdeu por 2-0 na primeira mão da Supertaça Sul-Americana para o Racing e, entre 12 equipas do campeonato carioca, ficou apenas em 9.º.
A disputa Textor-Al-Khelaifi prosseguirá em França, mas não só. A 20 de junho, em Seattle, haverá um Botafogo-PSG em Seattle. Teremos John Textor a aparecer diante do seu rival do Catar de chapéu de cowboy?