Take it to the World é o lema do Mundial de Clubes. Fiel ao mote, a FIFA abandona os salões impessoais e amplos do centro da Europa, as salas envidraçadas e as águas com gás do universo corporate helvético e recentra-se. Acolhe o dinheiro do Golfo Pérsico, seja do Catar, seja, sobretudo, da Arábia Saudita. Recorde-se afórmula viabilizadora do torneio. Injeção de dinheiro saudita na DAZN: mil milhões de dólares; dinheiro pago pela DAZN à FIFA pelos direitos de transmissão: mil milhões de dólares; prize money da competição: mil milhões de dólares. Full circle, como a canção dos Aerosmith, que são de Boston, na outra ponta do globo para onde se desloca a FIFA.

O olho do dinheiro está mais a Este, o olho do poder está mais a Oeste. Em 2024, a FIFA abriu escritórios em Miami, deslocando para lá funcionários, sobretudo do departamento jurídico, e montando o centro de operações para dirigir os acontecimentos dos 24 meses subsequentes. Mundial de Clubes em 2025, Mundial, o original, mas com 48 equipas, em 2026.

O futebol há muito sonha com a consolidação definitiva nos Estados Unidos, aquele país estranho onde football significa um jogo de bola oval, o futebol é o soccer, os clubes são franchises e não há subidas e descidas de divisão. O objetivo que levou para lá o Mundial 1994, que teve David Beckham como personagem a dar glamour à bola redonda e apresenta Lionel Messi como bandeira atual — em Miami, a nova capital empresarial da modalidade — levou a FIFA a instalar-se na 5.ª Avenida. Literalmente.

Os EUA são, neste momento, o palco central das operações da FIFA
Os EUA são, neste momento, o palco central das operações da FIFA Buda Mendes

Na semana das meias-finais do Mundial de Clubes, a FIFA abriu escritórios na artéria mais famosa de Nova Iorque. Onde? Na Trump Tower, claro, ou não houvesse "grande amizade" — palavras de Infantino — entre a entidade máxima da modalidade e Donald Trump.

Não é que a FIFA não tenha memórias do arranha-céus de 58 andares. Chuck Blazer, membro do Comité Executivo da FIFA entre 1996 e 2013 e secretário-geral da CONCACAF (confederação para a América do Norte, Central e Caraíbas) entre 1990 e 2011, tinha não um, mas dois apartamentos na Trump Tower. Um era para si, o outro para os seus gatos.

Importância de Blazer na história da FIFA? Admitiu ter conspirado, juntamente com outros dirigentes, para aceitar subornos nos processo de escolha dos anfiriões dos Mundiais 1998 e 2010. O papel de Blazer como testemunha foi fundamental para os processos que levaram à quedade Blatter e da cúpula dirigente do futebol mundial.

Take it to the World. Leva-o para o mundo, de Miami a Nova Iorque. Na cerimónia de inauguração dos novos escritórios, Infantino agradeceu a Eric Trump, filho do presidente norte-americano, que estava ao lado de Gianni.

"Agradecer também, claro, ao presidente Trump, que é um grande fã de futebol", referiu igualmente o líder da FIFA. Quando o atual inquilino da Casa Branca se encontrou com Marcelo Rebelo de Sousa, em 2018, a conversasobre Cristiano Ronaldo pareceu revelar que Trump sabia tanto sobre o madeirense como o português médio saberá sobre uma estrela indiana de críquete.

Este Mundial de Clubes fica, também, como o momento da definitiva, irreversível e total TrumpInfantinização da FIFA. A aliança entre Donald e Gianni, cuidadosamente forjada pelo suíço ao longo dos anos. É "absolutamente crucial" ter "uma relação estreita" com o 45.º e 47.º POTUS, explicou Gianni há meses.

Seguindo o guião de outras pessoas influentes, Infantino foi usando a lisonja e as massagens ao ego de Trump para cair-lhe nas boas graças. Foi ao comício de vitória e à tomada de posse do presidente, sempre munido de elogios e presentes. Efetuou visitas a Mar-a-Lago, deu prioridade a acompanhar Trump numa visita ao Médio Oriente face ao congresso da FIFA, espoletando críticas de federações europeias.

Infantino deixou o troféu do Mundial de Clubes na Sala Oval durante vários meses. O chefe da FIFA é obcecado com aquela peça, com as suas linhas, com o seu dourado, com a chave que abre ainda não se percebeu o quê. Talvez seja para desbloquear, definitivamente, os Estados Unidos como casa do futebol, ponto de encontro entre as private equity que investem em clubes, vastas comunidades de imigrantes, sobretudo hispânicos, que dão algum entusiasmo à bola redonda e a sede de protagonismo de quem manda no país.

O troféu do Mundial de Clubes ficou muito tempo no gabinete de Trump, assistindo, calado, à ascensão e queda da relação com Musk, por exemplo. Ou vendo como o presidente recebeu a equipa da Juventus, em nova cena bizarra, novo episódio de TrumpInfantinização, com os jogadores da vecchia signora em segundo plano enquanto Trump falava sobre a hipótese de bombardear o Irão. O futebol atrás de Trump, calado e obediente, enquanto se debate casualmente sobre atacar um território. Quando o POTUS foi questionado sobre como as tensões com o México e o Canadá afetariam a organização conjunta do próximo Campeonato do Mundo, Donald disse que "a tensão era uma coisa boa", que tornaria tudo "muito mais excitante", qual bate-boca entre treinadores. Infantino, claro, estava na sala, sorrindo perante as afirmações do amigo.

O homem que ganhou as eleições em 2024 já garantiu aos jornalistas que estará na final da competição, que decorrerá em Nova Jérsia entre PSG e Chelsea (domingo, 20h00, DAZN). Trump não se esqueceu dos gestos de amizade de Infantino, incluindo €534 milhões de financiamento para o Mundial de 2026 no big beautiful bill do início de julho.

Estádios cheios de gente e cheios de lugares vagos

A novidade do torneio e o congestionamento do calendário colocavam dúvidas sobre como as equipas, sobretudo os gigantes europeus, abraçariam estas semanas do lado de lá do Atlântico. Pode ter havido alguma desconexão inicial, mas, vendo as reações de desilusão do Manchester City quando foi eliminado ou os festejos efusivos do PSG a cada golo contra o Real Madrid, ficou evidente que aquele troféu significava algo para eles.

Como seria de esperar, o Mundial foi um momento de afirmação para o jogo extra-europeu, uma forma de mostrar que há vida além da Liga dos Campeões. Os clubes brasileiros, que tiveram quatro representantes nos oitavos de final, dois nos 'quartos' e o Fluminense nas meias-finais, viram cada embate intercontinental como uma prova de vida.

O Botafogo conseguiu a proeza de derrotar o PSG, o Fluminese eliminou o Inter, o Flamengo ganhou ao Chelsea. Mas não só do Brasil vieram bons resultados de fora da UEFA: o Inter Miami bateu o FC Porto, o Monterrey empatou com o Inter, o Al Hilal empatou com o Real Madrid e atirou o City para fora do torneio.

O 4-3 entre sauditas e ingleses foi, mesmo, o mais vibrante e espetacular embate do mês norte-americano. Sintomaticamente, foi um momento que juntou os dois novos polos da FIFA: dois clubes com dinheiro do Golfo Pérsico, um via governo de Riade e outro via Abu Dhabi, medindo forças na Flórida.

Trump inspeciona o troféu do Mundial de Clubes na Sala Oval
Trump inspeciona o troféu do Mundial de Clubes na Sala Oval Anna Moneymaker

Desde o início que as imagens das bancadas se tornaram um foco de desconforto para a FIFA. Por muito que houvesse todo o tipo de hipérboles e elogios face ao torneio ("histórico", "excitante", "épico", "perfeito êxito"), a realidade trouxe demasiado jogos com demasiadas cadeiras vazias.

Houve muitos encontros com menos de um terço dos estádios ocupados: o Ulsan HD-Mamelodi Sundows só teve 13,3% de assistência, o River-Urawa apenas encheu 16,6% do estádio, o Pachuca-Salzburg teve 22,3% do recinto com espectadores, o Mamelodi-Fluminense teve 22% das cadeiras ocupadas. O Atlético-Botafogo teve 75% do Rose Bowl vazio e o Dortmund-Ulsan apresentou 69% dos assentos sem pessoas.

Como foi amplamente noticiado, a FIFA quis levar o Mundial às grandes arenas americanas. Para ser "histórico", "excitante" e "épico", para estar à altura da grandiloquência da linguagem, era necessário sonhar alto. Não se pode dizer que ter 35.179 pessoas no Palmeiras-Al Ahly seja mau, mas havia mais de 40 mil lugares vazios no gigante MetLife; ter 30.151 almas num Botafogo-Seattle Sounders não soa a derrota, mas havia 38 mil bilhetes por vender no Lumen Field.

À medida que o torneio foi avançado, as assistências foram melhorando. Ainda assim, na fase a eliminar houve quase 55 mil lugares vagos no Inter-Fluminense em Charlotte, onde também houve 50 mil cadeiras não ocupadas no Benfica-Chelsea. No Dortmund-Monterrey, em Atlanta, cabiam mais 40 mil pessoas do que as que se deslocaram para o desafio.

O calor, um dos principais desafios para os jogadores no Mundial de Clubes
O calor, um dos principais desafios para os jogadores no Mundial de Clubes Ira L. Black - FIFA

Conscientes do contraste entre o torneio grandiloquente dos comunicados de imprensa e a competição de bancadas vazias da vida real, a FIFA foi tentando encher os estádios. Quando, em dezembro, se fez o sorteio da prova, o bilhete mais barato para o Inter Miami-Al Ahly da abertura rondava os €300. Pouco antes do arranque do jogo, era possível entrar no Hard Rock Stadium por um décimo desse valor.

A FIFA usou um sistema de preços dinâmico para os bilhetes, com o valor a subir ou descer — mais o segundo — consoante a procura. Outro exemplo da deflação afetou uma das meias-finais. O Chelsea-Fluminense, que teve uns muito respeitáveis 70.566 espectadores nas bancadas, apresentava, a alguns dias da eliminatória, os bilhetes mais baratos a rondar os €400. A dois dias da partida, esse valor descera brutalmente, para €11,45.

Processo semelhante decorreu nos confrontos dos quartos de final entre Fluminense e Al Hilal e Chelsea e Palmeiras. Em ambos os casos, o preço final dos ingressos andou nos €10.

O The Athletic informou que os voluntários presentes no Mundial tiveram direito a quatro bilhetes de oferta para todos os embates dos quartos de final. A exceção a este presente para compor estádios foi o Real Madrid-Borussia Dortmund e isso explica-se porque há um clube que se destaca na popularidade no soccer.

Os merengues há muito que trabalham o mercado dos EUA. Florentino Pérez, que utilizou o modelo de negócio dos estádios norte-americanos para edificar o novo Santiago Bernabéu, empenha-se pessoalmente no cuidado que o clube tem com o lado de lá do Atlântico, numa relação que estrelas como Beckham, Cristiano Ronaldo e até Luka Dončić facilitaram. Nenhum dos seis compromissos dos blancos no Mundial de Clubes teve menos de 60 mil espectadores, sempre com taxas de ocupação acima dos 90%.

O Benfica-Chelsea esteve duas horas parado devido ao clima
O Benfica-Chelsea esteve duas horas parado devido ao clima NurPhoto

Riders on the storm

O futebol é uma excelente ferramenta para aprender sobre outras áreas. Aprende-se geografia, política internacional, história.

O Mundial de Clubes foi uma oportunidade para ficarmos a saber mais sobre a metereologia dos Estados Unidos, as suas particularidades e regulamentações. Exemplo: se uma tempestade se aproximar de um estádio, o jogo suspende-se e toda a gente tem de procurar abrigo. É preciso que haja 30 minutos seguidos sem trovoada para que a ação retome. Um vislumbre de irritação dos céus e a contagem volta ao zero.

Esta lição foi aprendida da forma mais evidente no Benfica-Chelsea, a eliminatória eterna, que terminou quatro horas e 39 minutos após começar. A um ano do primeiro Mundial com 48 equipas, uma maratona de 104 partidas com pouca margem para ginásticas de calendário, as suspensões e atrasos foram parte do quotidiano do torneio.

O Ulsan HD-Mamelodi Sundowsn, em Orlando, não arrancou devido a uma tempestade. O Pachuca-Red Bull Sazlburg também se atrassou por uma tempestade em Cincinnati, tal como sucedeu no Benfica-Auckland City em Orlando.

Chuva, trovada e calor. Muito calor. O calor que levou a que o Palmeiras-Al Ahly, em Nova Jérsia, fosse interrompido. Para beneficiar o prime time europeu, muitos embates iniciaram às 12h00 ou às 15h00 locais. O resultado foram jogos disputados bem acima dos 30.°C, muitos a rondar os 35.°C. As enormes arenas abertas, desprotegidas do sol, as crateras em Charlotte, Pasadena ou Nova Jérsia, foram autênticos fornos, com os futebolistas a abraçarem cada paragem nos encontros como um peregrino no deserto, deitando água gelada pelo corpo abaixo ou encostando a cara nas gigantescas ventoinhas que foram colocadas ao pé dos bancos de suplentes.

Para juntar aos constrangimentos, um último problema chegou na parte final do Mundial de Clubes. O trânsito para chegar ao MetLife de Nova Jérsia levou a que alguns adeptos chegassem uma hora mais tarde ao Dortmund-Real, dos quartos de final, e forçou mesmo a retardar 10 minutos o arranque das meias-finais dos espanhóis diante do PSG. A FIFA apelou ao uso de transporte público, mas good luck with that num país viciado no automóvel particular e numa arena com um colossal parque de estacionamento.

Da Trump Tower até ao MetLife são uns 15 quilómetros. Saber quanto tempo se demora é imprevisível, tendo em conta os engarrafamentos nova-iorquinos. Mais uma dúvida para juntar a um mundo cheio delas.