Não há registos de uma diferença tão pesada e abismal entre Benfica e FC Porto numa temporada. Se uma vitória por 4-1 diante do arquirrival é pesada, duas derrotas com este desnível são para entrar a negrito em qualquer registo dos livros dos recordes. O peso do resultado é demasiado grande para não ser um dos pontos mais marcantes da temporada de águias e dragões e, no caso dos encarnados, é a Bruno Lage que os dois triunfos vão estar associados.

Em ambos os jogos Bruno Lage soube preparar a equipa para penalizar as maiores falhas do FC Porto. Se na Luz foi através da pressão alta e asfixiante que o Benfica recuperou muitas bolas e impediu a equipa treinada, na altura, por Vítor Bruno, de sair a jogar com conforto e tranquilidade, no Dragão foi pela capacidade de ferir as costas da frágil linha defensiva às ordens de Martín Anselmi que o Benfica se superiorizou.

No rescaldo do jogo, Bruno Lage colocou um grande peso da vitória na sua equipa técnica. Não foi, naturalmente, o timoneiro do Benfica o único estratega responsável pela elaboração e preparação da abordagem que vergou os dragões e permitiu às águias voar mais alto num terreno tradicionalmente difícil e com traumas bem recentes.

O golo muito cedo na partida, ainda os ponteiros do relógio não tinham dado uma volta em torno do eixo central, acentuou a estratégia do Benfica preparada para a partida. A vantagem no marcador obrigou o FC Porto a assumir ainda mais o jogo e permitiu às águias ter maior conforto a defender mais atrás e, principalmente, espaço para sair rapidamente em transição.

A maior surpresa na estratégia de Bruno Lage prendeu-se com o papel de Ángel Di María. O extremo argentino não teve o jogo mais influente do ponto de vista ofensivo, mas cumpriu uma importante tarefa defensiva a acompanhar as subidas de Francisco Moura e a fechar uma linha de cinco que permitisse ao Benfica ter vantagens. Com o argentino mais baixo, o Benfica conseguiu ter mais lançadores a ver o jogo de frente e acentuar o privilégio do corredor esquerdo para as saídas em transição.

Com Álvaro Carreras e Kerem Akturkoglu soltos a procurar as costas de João Mário e Neuhén Pérez, dois nomes defensivamente frágeis, o Benfica foi criando oportunidades ao compasso de Orkun Kokçu, Fredrik Aursnes e Di María, que mal recebiam a bola e se livravam do adversário – num jogo em que, ao contrário do que Anselmi pediu, o FC Porto foi inferior nos duelos ganhos – a enviavam para o espaço. Desde as saídas mais diretas, com Anatoliy Trubin a enviar uma bola mais longa, às mais rendilhadas, superando a pressão do FC Porto, sempre que o Benfica chegou ao meio-campo contrário criou perigo.

Mesmo no melhor período dos dragões, assentando com bola e gozando de Alan Varela, o melhor em campo de azul e branco, mais à frente no terreno, recuperando bolas e devoldendo o esférico ao FC Porto, nunca houve a sensação de jogo controlado, muito menos de perigo iminente. Faltou ao FC Porto transformar a posse em perigo para ferir à frente e atrás faltou tudo.

Num cenário semelhante aquele encontrado diante do Farense, o Benfica teve em Kerem Akturkoglu o principal desequilibrador no espaço e em Vangelis Pavlidis o equilíbrio perfeito para dosear o ímpeto e o fulgor ofensivo. O turco está novamente num bom momento, sendo capaz de traduzir o seu rendimento (muito objetivo) em assistências e remates. Quanto ao grego, outrora criticado por não marcar, tornou-se no primeiro jogador do Benfica a marcar três no mesmo jogo em pleno Estádio do Dragão.

Além do papel de gestor de ritmos, numa equipa que só joga da terceira velocidade para cima e que precisa de um travão em certos lances, tem ganho confiança dentro de área e juntado a habilidade nos apoios à qualidade no trabalho dos lances antes do remate. Todos os golos do avançado grego no Dragão estão envoltos numa delicadeza que os torna mais atraentes, como se todos os toques na bola de Vangelis Pavlidis fossem adornados ao som de passarinhos a cantar numa manhã solarenga de primavera. Numa era em que os avançados violentos e rompantes no espaço vão-se multiplicando (e bem), é quase contracíclica a presença do refinado grego no centro do ataque do Benfica.

Mais atrás houve destaques claros. Além do papel ofensivo, soltando-se e projetando-se, Álvaro Carreras foi protagonista de momentos de suspense quando, nos momentos em que a pressão do FC Porto se procurava agigantar, soube quase sempre ludibriar Pepê e superar pressões sem necessidade de afastar a bola de qualquer maneira. No meio-campo, há dois termómetros para medir a temperatura do jogo do Benfica.

Mais evidente nos lances dos melhores momentos, Orkun Kokçu fez, provavelmente, o melhor jogo grande desde que chegou a Portugal. O contexto do jogo – receber, limpar a pressão e lançar – é perfeito para evidenciar as características do turco como lançador e passador. Mais influente em diferentes alturas e com um destaque menos visível, mas, porventura, superior, Fredrik Aursnes foi o dínamo e o pêndulo do jogo do Benfica, subindo para pressionar, recuando para atrair a pressão e abrir buracos ainda superiores e compensando movimentos. O cerebral do norueguês tem sido cada vez mais destaque nas águias.

Por fim, e com comparação fácil e desnivelada ao adversário, António Silva e Nicolás Otamendi fizeram uma exibição imponente. Agressivos nos duelos, eficazes no timing no desarme e com tranquilidade na maioria dos lances, a exibição dos centrais do Benfica permitiu dar segurança e estabilidade para controlar o jogo. Mesmo sem tanta bola, as águias nunca estiveram em reais dificuldades ou em situações de aperto sem resolução evidente. Completamente antagónicos ao jogo da última linha do FC Porto numa diferença que evidencia e explica a disparidade.

Foi em 2010 que a Dreamworks lançou “Como Treinares o Teu Dragão”, um filme que comprovou, para toda uma geração, que os humanos podem domesticar e conviver tranquilamente com esta espécie da fantasia, aparentemente feroz e voraz. Já com três filmes da saga, se a Dreamworks precisar de um novo protagonista, Bruno Lage pode enviar a candidatura. Isto, se não contarmos já os 90 minutos na Luz e no Dragão como o 4º filme, dividido em duas partes. E, como não há inocências, o número 4 tem razão de ser.

BnR na Conferência de Imprensa

Bola na Rede: Hoje o Di María tem um papel muito importante do ponto de vista defensivo, fazendo o acompanhamento do Francisco Moura e fazendo muitas vezes uma espécie de linha de 5. Como é que vê a importância do Di María neste jogo deste ponto de vista e se o posicionamento mais recuado do argentino o permitiu ter mais vezes de frente para o jogo para lançar e incentivar a procura do lado esquerdo como lado de chegada nas costas da linha defensiva do FC Porto?

Bruno Lage: Sim, quer a defender, quer a atacar. Não gosto de olhar muito para as estatísticas do jogo, mas creio que o Di María na primeira parte foi o nosso jogador que mais bolas recuperou. Se calhar termina aquele tabu de início de época, quando cá cheguei, que o Di María não defende. Acho que ele hoje deu uma lição de como pode defender e como pode jogar ligeiramente mais baixo para depois sair a pressionar. Mérito total do jogador de entender os dois jogadores que apareciam naquela posição. A única coisa onde tentámos surpreender o FC Porto, porque aquilo que foi a análise ao longo da partida, foi alterar a nossa saída a três. Normalmente fazemos pelo lado esquerdo, quer pelo Carreras quer pelo Kokçu, e desta vez fizemos pelo lado direito. Meter o Tomás [Araújo] numa posição mais baixa e o Akturkoglu e o Carreras do lado contrário mais subidos. Tínhamos feito e fomos recuperar algumas ideias do que tínhamos feito com o Boavista. Esse foi parte do jogo. A atacar foi o que tentámos fazer com o Boavista, salvo erro na sexta jornada, e a nossa organização defensiva, porque o FC Porto mete muita gente por dentro com muita qualidade, foi tentar replicar o que fizemos com o AS Mónaco.

Infelizmente não nos foi concedida a possibilidade de colocar uma questão a Martín Anselmi